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A Coleção Seixas do Museu de Marinha
António Costa Canas
31/08/2021
Henrique Maufroy de Seixas (foto colorida com AI - original Museu de Marinha
Certamente quase todos os membros da Confraria Marítima de Portugal – Liga Naval Portuguesa conhecem a Messe de Cascais. Também praticamente todos saberão que o edifício onde a mesma se encontra é conhecido por Palácio “Seixas”. E a maioria saberá que esse nome se deve ao benemérito, Henrique Maufroy de Seixas, que deixou em testamento este palácio para a Marinha. Provavelmente já será menor o número daqueles que conhecerão com algum detalhe quem foi Seixas e que outros contributos relevantes ele deu à Marinha, nomeadamente ao seu Museu. O principal propósito deste breve apontamento é dar a conhecer esta figura e apresentar algumas das coleções que doou ao Museu de Marinha, mesmo correndo o risco de não trazer grandes novidades para quem conheça bem a história do Museu de Marinha.
Henrique Maufroy de Seixas nasceu na freguesia das Mercês, em Lisboa, a 15 de abril de 1886. Curiosamente, encontram-se algumas vezes referência a 1887 como ano do seu nascimento. Por exemplo, a Revista da Armada dedicou-lhe, um pequeno artigo de homenagem, em abril de 1986, sendo referido que o dito artigo tinha como propósito lembrar o centenário do seu nascimento, que ocorreria no ano seguinte. Inclusivamente, foi incluída uma Nota da Redação com o seguinte texto:
“N. R. – Um ano antes do centenário do nascimento de tão notável cidadão e grande amigo da Marinha, a “Revista da Armada” rende-lhe as suas homenagens, recordando-o com saudade e admiração”.
No entanto, entre a documentação constante no seu espólio, existente no Museu de Marinha, encontram-se o seu assento de nascimento e também o de óbito, e ambos coincidem com o ano de 1886.
Era filho de Henrique Júlio de Seixas e Marie Louise Maufroy, nascida em França, sendo ambos solteiros. Seu avô paterno, Manuel António de Seixas, de famílias de origem judaica, era oriundo de Torre de Moncorvo mas veio jovem para Lisboa. Aqui dedicou-se ao comércio, tendo feito fortuna, sendo um dos mais importantes capitalistas de Lisboa, chegando a Par do Reino em 1880.
Ao morrer, deixou uma parte da sua fortuna para obras beneméritas, tanto em Lisboa como em Moncorvo, mas deu a maior parte dos seus bens aos seus dois filhos: Henrique Júlio de Seixas e Júlio Henrique de Seixas.
Estes continuaram a atividade comercial que herdaram do pai e Henrique Maufroy de Seixas dedicar-se-á igualmente à atividade comercial. Casou, em 1914, com Ida Santos de Seixas, não tendo tido qualquer descendente.
Apaixonado pelo mar, consta que teria desejado seguir uma carreira naval, mas foi dissuadido pela família. Tal não o impediu, contudo, de alimentar esta paixão por outras vias. Adepto dos desportos náuticos, possuía duas embarcações de recreio: o iate Ida e a chalupa Vivandiére. Nestes fez inúmeras viagens ao estrangeiro. Participou igualmente em diversas regatas e manteve forte ligação a clubes náuticos, nomeadamente o Clube Naval de Lisboa, do qual foi sócio honorário, e o Clube Naval de Cascais, tendo sido sócio fundador deste último.
Este interesse de Seixas pelos assuntos náuticos levou-o a constituir uma monumental coleção única de peças, de diferentes tipologias, tendo como denominador comum a ligação ao mar. Esta coleção começou a ser formada a partir de 1915 e foi crescendo até à morte do seu possuidor, em 1948. A mesma foi instalada no prédio onde ele habitava, na Rua D. Estefânia, ocupando a coleção dois pisos completos desse edifício. Em testamento doou à Marinha a propriedade do seu palácio em Cascais, assim como toda a coleção do seu “Museu de Marinha” e ainda um imenso acervo fotográfico:
“Lego em plena propriedade, ao Estado, (Ministério da Marinha), todos os objectos, sem excepção alguma, que constituem o Museu de Marinha que tenho instalado no primeiro e segundo andares do meu prédio em que habito nesta cidade, na Rua D. Estefânia, […] devendo tudo o que constitue o mesmo Museu, d’ali ser retirado o mais breve possível, mas nunca além dos três meses a contar da data do meu falecimento. Mais lego ao Estado, também em plena propriedade, a minha colecção de fotografias de assuntos náuticos referentes à Marinha de Guerra Portugesa e estrangeira, quer tiradas no Tejo, quer nas Colónias e estrangeiro e bem assim as respectivas chapas […].”
A cláusula testamentária que impunha um prazo de três meses para retirar aquela coleção colocou um problema complicado à Marinha. Já existia um Museu de Marinha, mas o mesmo não tinha espaço para acolher um acervo daquela dimensão. Esse museu foi criado em 1863, por D. Luís, funcionando como museu escolar, integrado na Escola Naval. A sua coleção inicial era composta essencialmente por um conjunto de modelos de navios, pertencentes à família real, originalmente no Palácio da Ajuda, mas que D. Maria II ofereceu à Marinha. Este espólio foi crescendo, por incorporação de instrumentos de navegação e outros objetos de interesse museológico. Em 1916, um incêndio na Escola Naval destruiu praticamente todo o museu. No entanto, o mesmo continuou a existir e a crescer, fruto de peças que foram sendo oferecidas e de outras que deixaram de ter uso na Marinha, mas que se reconheceu com interesse para exposição. Em 1936, com a passagem da Escola Naval para o Alfeite, o museu separou-se da escola, permanecendo em Lisboa, no espaço onde funcionava anteriormente. Porém, nesse espaço do antigo Arsenal de Marinha foram-se instalando diversos organismos da Administração Central da Marinha e respetivo ministério, razão pela qual não existiam condições para uma eventual expansão do Museu. Foi então encontrada uma solução provisória para instalação da coleção Seixas, no Palácio das Laranjeiras. O Museu de Marinha funcionou aí entre 1949 e 1962, ano em que passou para os Jerónimos.
Mas que tipo de acervo compõe a coleção Seixas? Podem considerar-se essencialmente quatro grandes tipologias de peças: modelos, obras de arte, fotografias e finalmente desenhos e planos.
O interesse de Seixas por modelos, dos mais variados tipos de navios, começou cedo. Um dos primeiros modelos da sua coleção foi o do caíque real Sirius, executado por José Martins Guerreiro, que quando construiu o modelo desempenhava as funções de mestre numa das embarcações da família real, o iate Lia. Seguiram-se outros modelos de embarcações de recreio também por ele executados. Manuel Brasileiro, maquinista do iate Ida, fez o modelo desta embarcação de Seixas e seguidamente foi fazendo outros modelos. Por sua vez, Manuel Brasileiro apresentou-lhe Marques Manuel, que se encontrava aposentado, tendo sido mestre de um palhabote do Marquês do Faial, e que ocupava o seu tempo fazendo modelos. Seixas encomendou-lhe diversos modelos, especialmente de pequenas embarcações de recreio que animavam a baía de Cascais.
Um passo importante para a coleção de modelos ocorreu por alturas da Grande Guerra. Seixas tomou conhecimento que tinham sido apreendidos os bens de alguns cidadãos alemães, entre os quais se encontravam vários modelos, nomeadamente de algumas embarcações reais e de embarcações do Tejo. Esses modelos foram levados a leilão, e Seixas adquiriu os que foram a hasta, mas infelizmente não estavam lá o do bergantim real nem da saveira dourada. Desejoso de ter esses modelos na sua coleção, Seixas procurou saber quem tinham sido os modelistas que os fizeram e contratou-os para fazerem novos modelos. A partir daqui começou a contratar mais modelistas e criou as suas próprias oficinas de modelismo. Ao longo de décadas, destas oficinas saíram centenas de modelos, dos mais variados tipos de navios e embarcações: de guerra, de pesca artesanal, de tráfego fluvial ou de recreio, entre outros. Seixas acompanhava de perto a construção dos seus modelos e gostava de ser fotografado junto a eles, muitas vezes com os artistas que os executavam.
Muitos desses modelos, especialmente de embarcações tradicionais, de pesca e fluviais, resultaram de digressões que alguns dos seus modelistas fizeram pelas regiões costeiras e pelos rios, para recolherem dados sobre essas mesmas embarcações. Por forma a disporem de informação rigorosa, para posteriormente poderem reproduzir fielmente as embarcações em modelos, desenhavam planos das embarcações, os quais integram o espólio do Museu de Marinha.
Paralelamente, e com o mesmo propósito de disporem de informação rigorosa sobre as embarcações, recolhiam também inúmeras fotografias das mesmas. Seixas cedo percebeu a importância da fotografia como uma forma eficaz de preservar para o futuro imagens de tudo aquilo que se relacionasse com a náutica da época em que viveu. Além das fotos recolhidas por sua iniciativa, pediu a diversos oficiais de Marinha e outros amigos seus que lhe oferecessem, ou emprestassem fotos. Recorreu igualmente a alguns dos mais conceituados fotógrafos do seu tempo, como Garcez, Benoliel, ou Horácio Novais, entre outros, que lhe disponibilizaram inúmeras fotos. O seu espólio atingiu cerca de 20 000 negativos que doou ao Museu de Marinha, mas também às câmaras municipais de Cascais e de Lisboa. Algumas dessas fotos foram reproduzidas em provas de grandes dimensões e colocadas em suporte de cartão. Nesses suportes existiam legendas explicativas da imagem que estava representada. Estas fotografias estavam em exibição no museu que tinha em sua casa.
Além das fotos, também colecionou obras de arte representando temas marítimos. Entre essas obras contam-se peças de alguns dos mais notáveis artistas do seu tempo como: D. Carlos, João Vaz, Pedroso, Pinto Basto ou Tomás e Melo, entre outros.
Autor: António Costa Canas
Capitão-de-mar-e-guerra (RES) / Professor da Escola Naval / Doutor em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa