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A subida do nível do mar e a imutabilidade ou variabilidade das linhas de base escolhidas pelos estados costeiros
Prof. Dr. Fernando Loureiro Bastos
14/11/2023
As relações entre o território terrestre e os espaços marítimos sujeitos à soberania ou jurisdição dos Estados costeiros têm vindo a ser enquadradas nas últimas décadas pelo pressuposto de que as linhas de base escolhidas pelos Estados costeiros são tendencialmente permanentes e que os espaços marítimos ficarão inalterados após a sua reivindicação unilateral ou delimitação por acordo ou em resultado de intervenção solicitada de terceiros. A isso acresce que, tradicionalmente, as fronteiras têm sido encaradas como de algo de imutável mesmo quando confrontadas com uma alteração fundamental de circunstâncias. As alterações climáticas e a subida do nível do mar começaram, no entanto, a desafiar estas presunções e a impor um questionamento sobre se a consagração da imutabilidade do território do Estado costeiro no âmbito do Direito Internacional contemporâneo não deveria ser acompanhada de um regime jurídico-internacional adequado a lidar com a exposição do território terrestre a fenómenos naturais e às alterações que daí poderiam resultar.
Neste âmbito, em termos que devem ser sublinhados, a importância das linhas de base pode ser compreendida de uma forma cristalina se tivermos em consideração que os diversos espaços marítimos existentes ao abrigo do Direito Internacional, como o mar territorial, a zona contígua, a zona económica exclusiva e a plataforma continental, têm como limite interno as linhas de base escolhidas pelos Estados costeiros. Nestes termos, a relação entre a linha de base normal e as alterações físicas da linha da costa pode ser ilustrada, a título de exemplo, com a situação do território continental português, dado que, entre 1958 e 2010, em certos troços da costa houve um recuo médio da linha de costa entre os 200 e 300 metros e, no período entre 2010 e 2018, ocorreu uma perda de território terrestre na ordem dos 100 hectares[1].
A apreciação desta matéria deve estar consciente de que o tempo utilizado pelo direito para a apreciação das consequências jurídicas da subida do nível é quase simbólico quando comparado com o tempo usado por certas áreas das ciências naturais, muitas vezes estimado em milhares ou milhões de anos. Com efeito, a apreciação jurídica das modificações que podem ocorrer no território terrestre do Estado costeiro provocadas pela subida do nível do mar está circunscrita a décadas, na medida em que o enquadramento dos espaços marítimos atualmente existente é o resultado de uma evolução que começou com a Proclamação Truman, de 28 de setembro de 1945, teve uma expressão convencional inicial com as Convenções de Genebra sobre o Direito do Mar de 1958, e se veio a consolidar com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), de 10 de dezembro de 1982, após a sua entrada em vigor em 1994.
Um elenco sumariado de algumas das questões jurídico-internacionais relacionadas com a subida do nível do mar deve ter em consideração: i) a imutabilidade ou variabilidade das linhas de base; ii) as consequências jurídico-internacionais derivadas do desaparecimento de uma ilha que possa ter sido usada como ponto de referência para a fixação de espaços marítimos ou da alteração para «rochedo» do seu estatuto jurídico-internacional; iii) os efeitos jurídicos das alterações dos limites do território terrestre em relação às delimitações de fronteiras marítimas; iv) o regime jurídico-internacional aplicável a movimentações forçadas de pessoas pertencentes a uma mesma comunidade por o seu território terrestre ter desaparecido ou ter-se tornado inabitável; vi) o estatuto jurídico-internacional dos indivíduos de uma população cujo território terrestre tenha desaparecido ou se tenha tornado totalmente inabitável; vii) a necessidade de reponderar os elementos constitutivos do Estado, nomeadamente em resultado da relação entre território terrestre e espaços marítimos; viii) a possibilidade de imputar, através das regras da responsabilidade internacional, os danos causados às populações dos Estados costeiros cujos territórios terrestres desapareceram ou se tornaram inabitáveis a outros sujeitos de Direito Internacional, ou a atores não estaduais, como empresas transnacionais; viii) o apuramento de quais são os mecanismos de resolução de conflitos que podem ser utilizados para discutir e solucionar litígios jurídico-internacionais que resultem da necessidade de lidar com as consequências da subida do nível do mar; e, finalmente, ix) o apuramento da existência de mecanismos de resolução de conflitos que possam ser utilizados para discutir ou solucionar litígios que possam vir a ser desencadeados por pessoas ou entidades desprovidas de um estatuto jurídico-internacional, nomeadamente pelas populações dos Estados cujos territórios terrestres desapareceram ou se tornaram inabitáveis.
A consciência da existência de problemas jurídico-internacionais provocados pela subida do nível do mar que estariam carecidos de uma resposta adequada ao nível do Direito Internacional levou a que as diversas matérias relacionadas com este tema começassem a ser objeto de reflexão e de investigação no âmbito da Associação de Direito Internacional (International Law Association) e da Comissão de Direito Internacional (International Law Commission). No que especificamente concerne ao território terrestre do Estado costeiro, a questão de saber se as linhas de base (jurídicas) permanecem ou devem ser alteradas para retratar, com a máxima fidelidade possível, de um modo ambulatório, a realidade física que está subjacente à «linha de baixa-mar ao longo da costa» (artigo 5º CNUDM), implica que se deva ter em consideração os elementos retirados: i) de estudos doutrinais que lidam com esta matéria e das soluções que propõem; ii) da prática seguida pelos Estados neste domínio; e iii) da jurisprudência, nacional e internacional, que tenha resolvido litígios relacionados com linhas de base e o estatuto jurídico-internacional dos espaços marítimos de Estados costeiros desaparecidos ou inabitáveis.
Em termos que provocam uma incerteza a que os jus-internacionalistas estão (infelizmente) bastante acostumados, a ponderação dos dados disponíveis sobre esta matéria, não permitem concluir pela existência (ainda) de uma resposta jurídico-internacional indiscutível neste domínio da imutabilidade ou variabilidade das linhas de base escolhidas pelos Estados costeiros. Nesse sentido, podem ser apresentados três indícios que demonstram como não é (ou ainda não é) possível afirmar que existe uma resposta indisputável nesta matéria:
- em primeiro lugar, a posição dos Estados Unidos da América, em 2020, quando esclarece que «[t]he United States conducts routine surveys of its coasts and evaluates potential resulting changes to its baselines. For shifts other than de minimis ones (i.e., shifts that are greater than 500 meters), an interagency baseline committee reviews and approves any changes to the U.S. baselines. In these instances, any associated changes to the outer limits of maritime zones are also made on official charts. The baseline committee also reviews and approves closing lines, such as those drawn across the mouths of bays and rivers»[2];
- em segundo lugar, a conclusão do Committee on Baselines under the International Law of Sea que, em 2012, afirmava que, ao abrigo do Direito Internacional vigente, em circunstâncias correntes, «normal baseline is ambulatory», daí resultando, em conformidade, que «if the legal baseline changes with human-induced expansions of the actual low-water line to seaward, then it must also change with contractions of the actual low-water line to landward»[3];
- e, em terceiro lugar, a conclusão expressa pela Comissão de Direito Internacional, em 2020, de que «is early to draw, at this stage, a definitive conclusion on the emergence of a particular or regional customary rule (or even of a general customary rule) of international law regarding the preservation of baselines and of outer limits of maritime zones measured from the baselines»[4].
Trata-se, manifestamente, de uma matéria jurídico-internacional em evolução, demonstrativa da contemporânea dinâmica do Direito Internacional e do Direito Internacional do Mar, em que só desenvolvimentos futuros vão permitir perceber qual será o seu enquadramento jurídico-internacional, nomeadamente em resultado de uma prática consistente dos Estados relevantes e de uma jurisprudência que tenha conseguido, sem gerar excessivas polémicas, resolver litígios em relação a espaços marítimos e a fronteiras marítimas e, assim, contribuído para a manutenção e o reforço da paz e da segurança internacionais.
[1] Dados disponíveis no Portal do Estado do Ambiente – Portugal, sobre «Linha de Costa em Situação de Erosão», no âmbito da temática dos Riscos Ambientais (acessível em https://sniambgeoviewer.apambiente.pt/GeoDocs/geoportaldocs/rea/REA2019/REA2019.pdf).
[2] Comments of the United States Regarding Sea-Level Rise in Relation to the Law of the Sea, 14 de fevereiro de 2020, p. 2 (acessível em Sea-level rise in relation to international law: Information provided by the US (2020) (un.org).
[3] International Law Association, Sydney Conference (2018), International Law and Sea Level Rise, p. 28. Para mais desenvolvimentos, International Law Association, Johannesburg Conference (2016), International Law and Sea Level Rise, Interim Report (2016), pp. 11-15.
[4] International Law Commission, Sea-level rise in relation to international law. First issues paper by Bogdan Aurescu and Nilüfer Oral, Co-Chairs of the Study Group on sea-level rise in relation to international law, 28 February 2020 (A/CN.4/740), alínea i) do § 104.
Autor: Prof. Dr. Fernando Loureiro Bastos
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Presidente da Sociedade Portuguesa de Direito Internacional; Membro do Comité da Associação de Direito Internacional sobre Direito Internacional e Subida do Nível do Mar; Coordenador Científico do Projeto de Investigação "Em Preparação para a Subida do Nível do Mar: lindando com as alterações climáticas, reestruturando o território dos Estados e procurando mecanismos para a resolução de conflitos" (Lisbon Public Law Research Centre). Confrade da Confraria Marítima – Liga Naval Portuguesa.