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História de Mar

Dr. Rui Pereira Costa

25/08/2023

Aos primeiros alvores daquele dia 22 de março de 2000, foi possível ver com mais nitidez os movimentos de pessoas no cais e na praia da Aldeia da Preguiça, ilha de São Nicolau, Cabo Verde, onde, na noite anterior, tínhamos lançado ferro apenas a meia milha da linha de costa.

Escala há muito programada na preparação da viagem de celebração do “Brasil 500 Anos” a bordo da Caravela Boa Esperança, réplica das caravelas quinhentistas portuguesas, propriedade da APORVELA, Associação Portuguesa de Treino de Vela, cujo Comandante (também Confrade) João Lúcio da Costa Lopes, por anos antes ter casualmente aportado à Aldeia da Preguiça para reparação de uma avaria no seu veleiro, tomou contacto com a população e com a sua pobreza avassaladora, mas também, não obstante todas as dificuldades, com a sua capacidade solidária e com a sua afabilidade.

Em outubro do ano anterior, 1999, quando demos início aos trabalhos de manutenção e preparação da Caravela para a travessia, o Comandante sugeriu à tripulação a recolha de materiais didáticos, livros, cadernos, lápis e demais material escolar, bem como roupa de criança e adulto com o objetivo de entregar às crianças e à população “de uma aldeia paupérrima, mas de gente boa, perdida no meio do oceano…”, forma como na altura descreveu a Aldeia da Preguiça.

Com entusiasmo, tanto quanto a espectativa de realizar a travessia do Atlântico a bordo de uma réplica de uma Caravela de 500 na mesma rota de Cabral, os membros da tripulação empenharam-se na missão de recolha de materiais, pois a perspetiva da realização da missão solidária sugerida pelo Comandante João Lúcio agradava a todos.

Em pouco tempo se conseguiram reunir 50 kits escolares oferecidos pela então Comissão dos Descobrimentos, um sem número de outro material escolar que cada um se encarregou de angariar, roupa diversa para crianças e para adultos. Os caixotes destinados ao cumprimento desse desiderato solidário não couberam todos no porão da amarra, tendo de ser distribuídos por outros espaços da embarcação.

A frota que integrou essa celebração largou de Lisboa no dia 8 de março, precisamente 500 anos após a largada da Armada de Pedro Álvares Cabral com destino à Índia.

Ao pôr do sol do dia 21 desse mês de março, avistámos a “Ponta Grande”, cabo mais a sul da ilha de São Nicolau, e ao anoitecer estávamos em frente à Aldeia da Preguiça a SE da ilha.

Sendo embora a aldeia constituída maioritariamente por pescadores, não houve durante toda essa noite registo de aproximação de qualquer embarcação da Caravela. Ao contrário, verificou-se desde a nossa chegada um assinalável movimento de pessoas no cais e na praia, circunstância que atribuímos à curiosidade do aparecimento inusitado de uma embarcação de estranho formato para os locais, pensámos…

Com o sol da manhã era visível o movimento de algumas embarcações de pesca, pequenos botes a remos, era o mais que os pescadores de “maiores recursos” detinham como ferramenta de trabalho para assegurar o seu sustento e das suas famílias.

Depois do pequeno-almoço, a tripulação da Caravela entregou-se à faina de colocar no convés todos os caixotes com os materiais para doação. A tarefa seguinte era o seu transporte para terra, havendo, sem ajuda, que utilizar o nosso pequeno “bote” e realizar várias viagens para transportar carga e tripulação, toda ela desejosa de ir a terra partilhar os momentos de entrega do que havíamos recolhido e levávamos para a população.

A meio da manhã, vinda do lado de terra, surgiu uma pequena embarcação a remos com dois pescadores a bordo que, pouco à vontade, se aproximaram da Caravela depois de insistentes acenos e chamadas da tripulação. Não foi fácil iniciar o diálogo, mas convidámo-los para subir a bordo e, à pergunta se algum deles tinha filhos, a resposta de um foi: “tem 13 minino”. Abrimos um caixote com roupa de criança e, a partir daí, o diálogo tornou-se bastante mais fácil.

Os nossos “emissários” rumaram a terra com os presentes que lhes havíamos dado e a população que se encontrava no cais cercou a embarcação, certamente para saber quem nós éramos.

Minutos depois, várias embarcações remavam curiosas em direção à Caravela.

Aproveitámos o transporte para terra e, nessas embarcações e no nosso “bote”, acomodámos caixotes e tripulantes e fomos todos para a Aldeia. Em terra tivemos um acolhimento caloroso da população, dirigimo-nos para a escola primária e, ao cuidado do professor, entregámos o material escolar e as roupas que tínhamos trazido, daí resultando uma enorme alegria de todos.

O mais extraordinário foi o relato que o professor primário nos fez dos acontecimentos do dia anterior, do que aí se celebrou nesse dia e de como a nossa chegada tinha sido “estranha” para a população da aldeia.

Em boa verdade, a Ilha de São Nicolau e, em particular, a Aldeia da Preguiça, era um local secreto de aguada para os navios portugueses do século XV e XVI e a frota de Cabral tinha aí fundeado 500 anos antes para abastecimento. A testemunhá-lo encontra-se o padrão, cuja imagem reproduzo.

Naquele preciso dia 22 de março, as autoridades da ilha tinham organizado uma evocação dos 500 anos da passagem de Pedro Álvares Cabral por aquele local com uma cerimónia junto ao padrão.

A nossa chegada, ao anoitecer, causou estranheza à população e, segundo nos referiram, ao verem uma embarcação tão estranha, ousaram alguns pensar que poderiam ser talvez fantasmas, pois, durante o dia, tinham-se evocado marinheiros longínquos e caravelas e naus e, à noite, sem aviso, aparecia uma caravela de tempos passados… estranho!

Desfeitas as dúvidas, depois de um amigável convívio, regressámos a bordo para almoçar e levantar ferro em seguida, rumo a São Vicente, porto de escala antes de rumar a Salvador.

No final do almoço, recebemos a bordo da Caravela uma parte significativa da população, que encheu as embarcações de pesca disponíveis na praia e, numa comovente manifestação de agradecimento e reveladora de uma hospitalidade notável, vieram presentear-nos com ovos e alguns queijos de cabra, partilhando o pouco que tinham connosco. No convés, tocaram e cantaram as genuínas mornas de Cabo Verde e encheram a alma de todos os tripulantes.

Já fim de tarde, rumaram a terra e a Caravela levantou ferro e largou rumo a São Vicente.

Autor: Dr. Rui Pereira Costa