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Um sarau de Natal no Índico, um final de tarde em Sesimbra

Artur Manuel Pires

19/12/2023

A corveta fundeada em Sesimbra. Imagem de João Augusto Aldeia através de sesimbra.blogspot

Mas quer saber o melhor?

A corveta estava atolada no mormaço típico do Índico, num patrulhamento saltitante entre as quadrículas desenhadas nas cartas marítimas, e a tripulação, num tédio tépido, atenuado por uma solidão quase solene.

Disse, e puxou uma longa quantidade de fumo aromático, de um charuto fumado mais de metade.

Foi nessa altura que o imediato foi propor ao comandante um sarau para a Noite de Natal que se aproximava, na sua rota inexorável traçada no mapa sideral.

Estávamos sentados na esplanada soalheira de um café de Sesimbra, virados para a enseada, que não muito longe abria para o grande mar.

O comandante perguntou para que é que aquilo servia, e ele terá respondido que era para entreter a tripulação, e o comandante, mas como é que eu os entretenho, no restante tempo que sobra do sarau, e o imediato, sabendo que o comandante tinha navegado com agrado nos mares gelados do norte, terá convencido o comandante com o argumento que o tempo de preparação do sarau, era bem mais importante, ou seja, aquilo que não se via suplantava o que se via, aliás como nos icebergs.

Puxou outra fumarada.

O comandante ficou a imaginar o sarau como uma coisa muito fria, mas mesmo assim autorizou.

Ao largo, ancorada, destacava-se a silhueta elegante de uma fragata, rodando majestosa e prática, tanto quanto lhe permitia o ferro que a prendia ao fundo.

Os instrumentos musicais a bordo, eram uma viola empenada, que a tripulação utilizava para bater bolas de ténis contra a parede, umas castanholas desemparelhadas, e um piano que reproduzia com fidelidade o barulho de uma caldeira da sala de máquinas de um destroyer. E assim foi necessário apostar tudo num grupo coral.

Um coral!. Eu usufruí da sensação de que a estória, que estava bem boa, ainda ia ficar melhor.

E isso competia-lhe a ele. O imediato arranjou um reportório que ia do cancioneiro provençal até trechos do Lulu de Alban Berg, com passagem por cantigas tradicionais portuguesas, a brejeirice de trechos de vaudeville, e laivos de canto gregoriano.

Olhámos os dois por instantes para a tarde a espairecer por sobre a enseada, acabámos os cafés que tínhamos estado a beber, e ele continuou.

Efetivamente gastaram-se nos ensaios umas boas horas, que antes eram gastas a bocejar e a olhar para o relógio, os mais impacientes, e para o calendário, os mais apaziguados.

Em sintonia com o encaminhar da estória, a limpidez da tarde começou a deixar passar partículas de sombra.

Improvisou-se um palco, uma plateia, e até um pano de cena, com uma coloração e uma composição, que não deixava de lembrar Piet Mondrian, e que quando foi erguido, no tombadilho do navio, debaixo de uma daquelas noites maravilhosas com que os trópicos costumam brindar os filhos da alegria, deixou ver um coro muito arrumadinho, disposto em três níveis, naquilo que tinha sido um trabalho notável do coreógrafo de serviço, que por sinal era segundo-tenente.

Deu duas fumaradas consecutivas no charuto, e eu fiquei convicto que o fazia pelo trilho que a estória ia passar a percorrer.

Mas também deixou ver o comandante, que por causa daquela questão dos icebergs, tinha uma manta pelas pernas, à beira de uma apoplexia. Pura e simplesmente, não queria acreditar naquilo que os seus olhos viam. Virou-se para o pobre do imediato, e perguntou-lhe o que era aquele amontoado de gente, onde ele até reconhecia uma grande parte da sua tripulação.

Sobre Sesimbra, o azul cada vez mais pálido, encheu-se de estrelas insípidas, que gradualmente foram ganhando brilho.

O pobre homem não pode responder outra coisa, se não, o coro.

E ao capricho tirânico da maré, a água deslocava-se de um qualquer lado para os contornos da terra, e voltava novamente para lá.

Que era o coro via ele. Mas o que é que era aquela organização, por onde os seus homens se distribuíam?

A tarde e a noite começavam a disputar a paisagem de Sesimbra, e o horizonte já se pressentia mais do que se via.

O imediato abandonou por momentos o posto de primeiro-tenente, assumiu provisória, mas bravamente o de maestro, e esclareceu: primeira, segunda e terceira voz.

A ponta do charuto aproximava-se dos seus dedos, com a cinza cilíndrica e compacta.

O comandante nem chegou a ouvir bem a explicação. Levantou-se, dirigiu-se ao palco, e literalmente atirou-se ao coro. Puxou este, empurrou aquele, deslocou gente para a direita e gente para a esquerda, deu dois passos atrás, analisou o resultado, viu que ainda havia homens fora do lugar, voltou a alinhá-los, recuou, voltou a analisar, e daquela vez gostou do que viu.

Bateu a cinza para cima da terra de um vaso próximo, e continuou:

Quando se sentou, voltou a colocar a manta pelas pernas, e virou-se para alguém que estava ao seu lado, que naquele momento não era primeiro-tenente, nem maestro, nem imediato, mas tão somente o homem mais infeliz do universo, e disse-lhe, apontando para o novo grupo, mas que se conservava distribuído por três níveis: assim sim; oficiais, sargentos e praças.

Levantou-se, e esfarelou o que restava do charuto na terra do vaso.

E como comandante que era, deu ordem para que o espetáculo começasse.

E como se fosse ali mesmo, a noite também começou, engolindo por completo a embarcação.

Com a nova distribuição vocal, ouviu-se uma música assaz estranha, bastando dizer que os laivos de canto gregoriano saíram com um não sei quê de escola de samba dos morros cariocas.

A Lua, apareceu, redonda, para o grande final.

Mas quer saber o melhor?

E não é que eu não queria outra coisa?

A música acabou por ser transposta, e não fez nada má figura num festival de sonoridade concreta contemporânea, modalidade pós avant-garde, que se realizou algum tempo depois, numa cidadezinha simpática do midi francês.

Mandámos vir dois uísques cortados a água. Estávamos com a garganta seca, ele de falar e eu de ouvir.

01/11/2023

Autor: Artur Manuel Pires