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Portugal e o Mar

António Bossa Dionísio

28/02/2021

Barra do porto da ilha do Porto Santo (imagem João Gonçalves)

Metade da fronteira portuguesa é marítima, num contexto em que o Mar ocupa cerca de 71% da superfície da Terra.

Muito antes de sermos país, fomos portos. O nome que depois tivemos também foi o de um porto: Portus Cale.

Como escreveu Camões foi na praia, na «ocidental praia lusitana» que se fez o país, com o privilégio de ter uma varanda atlântica. Fernando Pessoa na Mensagem escreveu “ó Mar salgado quanto do teu sal são lágrimas de Portugal “.

Com o sentido coletivo que o Romantismo deu à palavra, o Mar fez-nos Nação.

Do Mar chegou-nos a metade materna da segunda dinastia da monarquia, foi por Mar que a expansão nos garantiu casamentos com princesas castelhanas, foi por Mar que Portugal se expandiu para muito longe, foi por Mar que a Restauração se sustentou, pois dificilmente o conseguiria sem o Brasil, foi por Mar que Portugal sobreviveu a Napoleão, na transferência da corte para o Rio em 1808, foi por Mar que o liberalismo desembarcou definitivamente em 1832, para embarcar de novo na segunda metade de oitocentos na ocupação africana que perdurou até 1975.

O Mar não nos deixa indiferentes à sua grandeza, mistérios e simbolismos. Sempre foi um espaço lendário, associado a numerosos mitos e lendas.

Descobrimentos

Nascemos a ver, ouvir e sentir o Mar. Desde os alvores da nacionalidade, e terminada a conquista do solo português, o Mar era o nosso grande chamamento, a nossa vocação. Por isso desbravámos o lendário Mar tenebroso, tornámo-lo no nosso Mar, alterando o rumo da nossa História e transformando a face do mundo até então conhecido.

Consolidada a conquista da terra pátria, a nação portuguesa via no Mar a sua porta natural – Onde a terra acaba e o Mar começa. Portugal lançou-se na maior aventura coletiva da sua História: a descoberta de novas terras.

Devidamente preparados, encetámos a grande e sonhada aventura dos Descobrimentos, cometimento grande de todo um povo.

Cultura e saber científico

A literatura e a cultura portuguesas estão salpicadas de Mar, cheiram a maresia.

Desde sempre o Mar foi a nossa paisagem quotidiana, impregnando profundamente as tradições, a literatura, a arte e a gastronomia portuguesas.

A riquíssima literatura de viagens do período dos Descobrimentos constitui um valioso tesouro, de elevadíssimo interesse humano, literário e etnográfico-cultural. Ela representa o espanto do Homem perante o Mundo descoberto.

O saber de experiência feito dos navegadores portugueses foi proporcionado por repetidas viagens, novas rotas, explorações terrestres, relação com outros povos e outras terras, outras línguas e outras religiões, outros climas e outras culturas.

Originando uma enorme massa de conhecimento, as Descobertas alargaram decisivamente os horizontes do saber científico e humanístico do seu tempo.

Camões celebra, em verso heroico e eloquente, a descoberta do caminho marítimo para a Índia como o clímax da História de Portugal e um dos feitos mais altos da Humanidade, justamente nos Lusíadas, exaltação máxima da nossa gesta dos Descobrimentos. Ergue-se como a nossa grande epopeia nacional e o símbolo maior do esplendor que Portugal alcançou na cultura europeia.

O progresso do conhecimento científico e o florescimento cultural dos séculos XV e XVI receberam o inestimável contributo dos Descobrimentos portugueses e da prosperidade económica então vivida.

Difusão da Fé Cristã

A difusão da fé cristã acompanhou sempre as viagens dos portugueses. Nas velas brancas desfraldadas ao vento, as embarcações que saíam da barra do Tejo ostentavam a Cruz de Cristo desenhada a vermelho vivo.

Tão importante como a nossa privilegiada situação geográfica, a ânsia de conhecimento, ou a vocação marítima e comercial, o nosso ancestral zelo de expansão da fé cristã constituiu um dos grandes fatores impulsionadores dos Descobrimentos.

Os Descobrimentos constituíam a ocasião privilegiada de concretizar o apelo evangélico de levar a mensagem cristã a todos os povos.

Ativos missionários foram os grandes protagonistas da expansão da fé pelos novos mundos. Embarcavam nas naus ou galeões que largavam da praia do Restelo. Pertenciam a várias ordens religiosas. Nas longas viagens, representavam o alento espiritual, presidindo aos atos de culto quotidiano. Como eram das poucas pessoas cultas, elaboraram algumas das mais notáveis descrições da vida a bordo, bem como dos contactos estabelecidos com outros povos.

Quando se descobria uma nova terra, assinalava-se a posse com um padrão duplamente simbólico, ostentando, ao alto, a Cruz de Cristo e as quinas da coroa portuguesa.

Além de se ter divulgado como língua comercial, o português era o idioma da cristianização de tantas gentes, de tão remotos e desconhecidos lugares.

Pela boca e ação dos missionários, difundimos a fé, expandimos a nossa cultura, divulgámos a língua portuguesa. Ficámos ainda a dever-lhes a execução de um trabalho intelectual de valor incalculável: obras históricas, gramáticas e dicionários das línguas autóctones, tratados científicos, descrição dos hábitos e dos costumes em preciosos trabalhos etnográficos, e até a decisiva influência ao nível da criação cultural e artística.

Regresso ao “cais” de partida

Cumprida a vocação expansionista, feito e desfeito o império ultramarino, foi hora do regresso às areias de Portugal e ao cais da partida.

Retornados ao chão europeu, que fazer do Mar, ou que deixaremos o Mar fazer de nós?

Portugal está de novo confinado à sua dimensão terrestre. Seguramente que nos ficou um saudável sentimento de autoestima, perante o nosso passado histórico.

O Mar faz parte do nosso devir histórico, está-nos no sangue. É um dos traços da nossa idiossincrasia como povo de vocação marítima. Ainda assim, Portugal, nas últimas décadas, esqueceu ou menosprezou essa relação. Por isso, hoje, mais do que nunca, o Mar, a sua economia (chamada de azul), os seus recursos sustentáveis, deverão ter um papel cada vez mais relevante.

Portugal tem de ver no Mar e nas relações transatlânticas, o outro lado do nosso pêndulo europeu, e, ver no Mar, não apenas o nosso passado, mas, sobretudo, o nosso futuro. Muito há ainda a fazer quer através dos nossos próprios recursos e vontades quer em articulação com as políticas para o Mar da União Europeia.

Assim deve e pode ser porque os avanços tecnológicos permitem agora realizar operações no alto Mar a profundidades cada vez maiores, os cidadãos estão cada vez mais conscientes de que os recursos da Terra são finitos, nomeadamente a água, e que é imprescindível reduzir as emissões de gases com efeito de estufa, o que tem levado à implantação de instalações de produção de energia renovável junto à costa oceânica, o que favoreceu a poupança de energia e a utilização do transporte marítimo em detrimento do terrestre.

Em suma, é inquestionável a aposta na Economia do Mar que assume em Portugal uma dimensão muito reduzida, cerca de 2,5% do PIB, enquanto alavanca de crescimento e desenvolvimento, na circunstância de sermos não só a maior zona económica exclusiva da Europa, 11ª no mundo, a que acresce a potencial extensão da Plataforma Continental que permitirá ficarmos entre os primeiros países oceânicos.

Autor: António Bossa Dionísio

Contra-almirante (Ref.) / Presidente da Direção da CMP-LNP