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Viagem à Antártida
Cmdt. José Inácio da Costa Lopes Júnior
29/06/2022

Disse-me o senhor Almirante Bossa Dionísio que “Seria excelente que nos contasse a sua viagem à Antártida em 2003, com o seu veleiro LILI II ” tendo em vista a sua publicação na newsletter da Confraria Marítima de Portugal – Liga Naval Portuguesa (CMPLNP)”.
Foi um convite que muito me honra.
Escrever sobre a viagem que mais me marcou, vinte anos depois, é um exercício de memória que não consigo deixar de associar ao tripulante desta expedição, o Nuno Torres Paulo, recentemente falecido e ao qual uma terrível doença foi apagando a memória.
Viajar em mar aberto sempre me fascinou, mas uma viagem de 20 Mil milhas para os mares além dos 60 graus de latitude Sul impõe respeito, muito estudo e ponderação.
O meu objectivo era chegar à Antártida entre Janeiro e Fevereiro para minimizar os perigos dessa região sempre adversa a pequenas embarcações. São áreas muito complicadas com mudanças de tempo repentinas e muito difíceis de prever, onde mesmo no Verão as temperaturas mais altas variam entre os cinco e seis graus. Temos que perceber que a colisão entre os oceanos Atlântico e Pacífico é sempre atormentada por icebergues e pavorosas tempestades.
Não é possível iniciar uma viagem destas sem um minucioso plano de preparação.1pira
Li tudo o que encontrei sobre navegação a estas latitudes e ouvi todos os testemunhos possíveis.
Largámos de Lisboa no dia 15 de Outubro de 2002, no veleiro Lili II, um Amel de 50 pés com uma tripulação composta por dois grandes marinheiros e amigos, o Nuno Torres Paulo e a Ana Paula Vizinho, aos quais exigi a garantia de terem uma vontade indiscutível de chegar à Antárctida e uma total confiança em mim.
Apanhámos mau tempo logo à partida, mas, estabilizado o vento, o poderoso velame do Lili II levou-nos até às Canárias em apenas cinco dias.
Aportámos em Puerto Calero, onde permanecemos três dias por ali residir um médico suíço que foi à Antárctida num Amel, que nos deu preciosas indicações. Sensibilizado com a visita, ofereceu-me uma faca com um cabo longo que usou para cortar o kelp, vegetal que se forma na superfície das águas costeiras semigeladas da Argentina e Chile e que dificulta o andamento das embarcações
A segunda escala foi Cabo Verde, aportámos na Aldeia de Preguiça, na ilha de São Nicolau, também por um motivo especial. Nos anos oitenta, o meu Irmão João Lúcio (também velejador) adotou uma criança desta povoação onde supostamente Pedro Álvares Cabral fez uma suposta aguada quando da sua viagem para o Brasil.
A visita tornou-se obrigatória sempre que navegamos por esta latitude.
Aproveitámos esta breve paragem para distribuirmos algum vestuário, artigos escolares e guloseimas às crianças mais necessitadas.
Ainda no arquipélago arribámos à ilha de São Vicente para reabastecimento. Quando fundeámos na Baia do Mindelo fomos surpreendidos por um pescador que me saudou pelo meu nome, mas o mistério rapidamente foi esclarecido, a RTP África tinha transmitido na véspera um programa sobre a viagem.
No dia seguinte, abastecidos e reconfortados com uma magnifica cachupa, partimos com destino a São Salvador da Baia, estávamos a 2 de Novembro e tínhamos pela frente 2.100 milhas.
Embalados pelos ventos alísios do hemisfério norte, aproximámo-nos do Equador, e, atendendo à estação do ano, segui para Oeste e atravessei a zona de calmarias entre os 30°35°W. e só então rumei para sul, por saber que a zona de calmarias se estreitava de leste para oeste.
Já com os Alíseos do Sul, para manter o rumo a São Salvador, navegámos praticamente sempre à bolina, que é pouco agradável.
Chegámos a São Salvador a 17 de Novembro, tínhamos vencido 3.968 milhas desde a partida de Lisboa.
Passados três dias, partimos para o Rio Grande do Sul cumprindo as 1.584 milhas em seis dias.
Este percurso ficou marcado por um impressionante espectáculo oferecido pela natureza.
Ao largo de Santa Catarina, uma verdadeira cortina de raios e uma assustadora “sinfonia” de trovões envolveram o barco. Mesmo desligando todo o equipamento eléctrico, os dois rádios de bordo avariaram.
Punta del Este no Uruguai era o passo seguinte. Aportámos na Marina que, devido à grande crise que envolveu o Uruguai e a Argentina, estava deserta. A marina é uma obra megalómana construída a pensar nos grandes veleiros e nas grandes regatas oceânicas internacionais como a Volvo e a Oceano Race. Estava planeada uma escala de dois dias, mas que acabou por ser de sete dias, devido ao baixo custo de vida e por a Argentina ficar relativamente perto.
A estadia coincidiu com o meu aniversário e resolvi convidar a tripulação e alguns velejadores uruguaios para um jantar no melhor restaurante da cidade. Foi um dos melhores jantares de aniversário que tive e sem dúvida o mais barato.
Soltámos amarras a 17 de Dezembro com destino à península Valdez, situada 300 milhas a sul do Mar del Plata, região que separa a Argentina quase europeia da selvagem e agreste. Durante o percurso surgiam e desapareciam em poucas horas ventos de força 9 e 10 que nos obrigavam a pôr o barco em capa. Chegámos à península a 22 de Dezembro, por carta de navegação.
Puerto Madryn parece grande e bem localizada, pelo que pensei passar lá o Natal. A realidade mostrou-se bem diferente. Porto Madryn era um enfiamento de casas com um molhe desprotegido batido por um vento de 30 nós. Desiludido, resolvi procurar outro local quando surgiu um pequeno bote com um casal de meia-idade responsáveis pelo club náutico na tentativa de nos demover a levantar ferro. Não resistimos a tão grande insistência e simpatia. O vento acalmou e surgiram e chegaram mais dois veleiros, um francês e outro suíço, como se tivéssemos combinado passar o Natal juntos.
A consoada de Natal foi passada com as três tripulações e o simpático casal. Foi uma ceia global com cabrito argentino, bacalhau português, fondue suíço e vinho francês.
No dia de Natal, voltámos a mar aberto, mas, com vento variável e rajadas de 50 nós, resolvemos fundear na Baia Janssen, num local deslumbrante onde vimos um guanaco, uma espécie de lama, mas de pêlo curto.
Passámos o Cabo das Virgens junto à entrada Ocidental do Estreito de Magalhães no dia 30 de Dezembro, uma referência histórica de respeito.
Tínhamos pela frente o temido Estreito de Le Maire com os seus densos nevoeiros e ventos súbitos muito fortes. Vencido este desafio, no dia 4 de Janeiro, o Lili II chegou a Ushuaia, tinha vencido desde a largada de Lisboa 8 Mil milhas.
Permanecemos na cidade de Ushuaia 20 dias aproveitados para os últimos preparativos antes de rumarmos às terras geladas. Quase desesperei para comprar um rádio VHS mas, após aturada procura, consegui que um japonês me vendesse um por grande favor. Embora fosse uma autêntica relíquia, ainda a cristais, nunca falhou e guardo-o como peça de museu.
Com uma previsão meteorológica de vento fresco e mar calmo, pensei que talvez fosse possível fazer uma pequena escala até à baía adjacente ao cabo Horn, possibilidade confirmada por outros navegadores.
Com o novo tripulante Filipe de Palma a bordo, soltámos amarras a 25 de Janeiro.
Com mar e vento de feição percorremos 60 milhas antes de fundearmos perto da baía. Fomos a terra por turnos, onde os únicos habitantes da ilha, o faroleiro e a mulher, surpresos, nos receberam com grande simpatia.
No dia seguinte, manhã cedo, um com um vento estável, partimos com destino a Deception Island, na Antártida, uma tirada de 600 milhas.
Neste percurso, cerca dos 60° Sul, passámos por onde a água dos oceanos Atlântico, Pacífico e Antártico se encontram; o vento amainou a temperatura e a humidade relativa de valores subpolares para polares. O vento voltou a soprar do quadrante sueste e voltámos ao andamento anterior.
Levámos três dias a chegar à Baia dos Baleeiros a 62°25′ Sul e 61° 29 W, onde se situava um centro de pesca à baleia, hoje totalmente desabitado, que constituía a porta de entrada dos poucos barcos vindos da América do Sul. Tinha previsto aí ficar oito dias, mas estivemos mais dez do que o previsto. Dezoito dias em que explorámos aquelas maravilhosas paragens.
Para explorar a região tracei um percurso com cerca de 300 milhas a fazer a motor devido à ausência de vento. A conselho de alguns navegadores experientes nesta região foram cumpridos em incursões nunca superiores a 1520 milhas e tendo sempre como escala uma das duas únicas bases polares internacionais, perto de Deception Island, a de Faraday instalada pelo Reino Unido, (onde foi descoberto o buraco na camada de ozono) hoje propriedade da Ucrânia e a base de Palmer pertencente aos Estados Unidos.
A 16 de Fevereiro, rendidos pela deslumbrante beleza natural, iniciámos a viagem de regresso. Aproveitando os ventos constantes SE favoráveis, nesta altura do ano, entre o Cabo Horn e o sul da Argentina, dirigiram-se para norte, onde, passados dois dias, foi possível navegar só à vela entre 7,5 e 8,5 nós.
A 5 de Março, 40 dias após termos deixado Ushuaia, chegámos a Buenos Aires. Decidimos aí permanecer alguns dias para “ganhar forças”, uma vez que ainda tínhamos até ao fim da viagem 6 mil milhas para vencer. Tinha programado subir o Atlântico até às Caraíbas e daí seguir para Portugal fazendo escala nos Açores, mas, antes, queria visitar um amigo em Porto Alegre, o Claúdio Oliveira também navegador. A ideia inicial era ir a Santa Catarina e ir de avião para Porto Alegre. Mas um dia depois da saída de Buenos Aires, já em águas brasileiras, fomos surpreendidos por uma depressão com ventos de 30 a 35 nós pela proa. Por não descortinar alteração no tempo decidi arribar para o Rio Grande do Sul e subir o Canal da Feitoria, a Lagoa de Patos (uma das mais extensas do mundo) e depois seguir pelo rio Guaíba até Porto Alegre.
De novo no Atlântico, o Lili II, embalado com os ventos alísios do hemisfério sul, percorreu as mil milhas que o levam até Paraty e dali mais 870 milhas até São Salvador da Baia. A chegada deus e a 20 de Abril, domingo de Páscoa. Esta escala foi importante para o descanso da tripulação e reabastecimento. Após uma permanência de três dias, demos início à mais longa tirada, uma viagem de 2.697 milhas até PointàPitre, na ilha de Guadalupe, com algumas derrotas diárias de quase 200 milhas. Em Guadalupe e em Antígua, já nas Caraíbas, aproveitámos para descansar e apreciar as belezas naturais.
Feito o abastecimento e a revisão ao barco, partimos a 11 de Maio em direção aos Açores. Sempre atentos à informação meteorológica tentei evitar depressões pronunciadas e com alguma sorte consegui mesmo à risca. A 26 de Maio, já com 2.566 milhas percorridas e 15 dias de viagem desde as Bermudas, chegámos à Marina da Horta. Após quase 8 meses de mar, o desejo de chegar a Portugal continental era grande, por essa razão a paragem foi breve, não deixando, contudo, de visitar na Ilha Terceira a recém inaugurada Marina de Angra do Heroísmo.
Deixámos os Açores a 31 de Maio e as Berlengas surgem no horizonte a 5 de Junho. É neste local que há mais de 30 Anos eu termino todas as minhas viagens oceânicas. Esta foi a minha maior viagem sem ser em grupo.
As 19.405 milhas percorridas só podiam ser condignamente comemoradas com vinho tinto e sardinha assada e assim aconteceu numa festa oferecida por vários amigos que aí se deslocaram.
Não posso deixar de referir que um dos principais fatores do êxito desta viagem foi a tripulação.
A experiência levou-me a só aceitar a bordo nas viagens oceânicas tripulantes que conheço muito bem. Não basta ter feito uma ou outra viagem, é preciso conhecer o seu carácter e a forma como se comportam em condições de mar adversas. Já conhecia o Nuno Torres Paulo e a Ana Paula Vizinho muito bem e tinha a certeza de que iam aguentar. Eram ambos tesos, trabalhadores e tinham uma grande confiança em mim. Isso foi tão importante como o bom comportamento do barco. Muito obrigado pela vossa atenção.
Autor: Cmdt. José Inácio da Costa Lopes Júnior
Confrade da Confraria Marítima - Liga Naval Portuguesa