Artigos

Um País Marítimo que não aproveita o Mar

J. Augusto Felício

30/04/2021

O Navio de investigação MÁRIO RUIVO a sair a barra do porto de Lisboa (imagem IPMA)

O mar é vital para os seres humanos e para o planeta e um espaço de soberania para os países marítimos, mas desde há muito que deixou de ser um desígnio nacional. Portugal dispõe de relevante posição geopolítica e geoestratégica. A zona económica exclusiva portuguesa (ZEE) ocupa a área de 1.727.408 km2, a quinta maior entre os países europeus e a vigésima a nível mundial. Com o pedido de extensão da sua jurisdição, a plataforma continental alarga-se a um total de mais de 3.877.408 km2, terceira posição como país europeu e décima mundial. Não se trata de ser maior ou menor, mas reconhecer o seu enorme potencial económico.

ZEE e extensão

ZEE e extensão

A Estratégia Nacional para o Mar 2030 (ENM), documento técnico em consulta pública, metodologicamente bem elaborado, distancia-se da realidade económica nacional. A sua estrutura e organização prioriza premissas reversas, centradas no emprego, segurança, saúde e bem-estar, literacia, soberania, questões de descarbonização e alterações climáticas. São, naturalmente, interessantes, a par das preocupações administrativas e burocráticas do Estado, para uma resposta política e social. No essencial, condiciona a economia empresarial a objectivos políticos e à polis, fortemente limitada, daí as dificuldades em desenvolver negócios estruturantes e promover a formação de clusters de actividade. Quem se aventura nos negócios enfrenta a adversidade, não apenas do mercado, mas, mais pesado ainda e prévio, a da sobrecarga administrativa e burocrática do Estado. Correntemente, os governantes estabelecem limitações para tudo, não asseguram estabilidade e continuidade, como se a vida fosse predeterminada e o sucesso garantido aos empresários. O país necessita de compreender o que representa o MAR em termos económicos, como ponto de partida para se elaborar a estratégia de desenvolvimento económico e a estratégia para o MAR.

Sem economia não há política e vice-versa, nem políticas que valham, porque não se consegue realizar a política sem a economia. A política e a economia são a MOEDA necessária cunhar, cujo valor depende do seu papel e reconhecimento. Por um lado, o valor concedido à política ou polis, com as suas orientações e decisões, suportada num modelo de sociedade – a cara da moeda. Por outro, o valor reconhecido à economia, ao envolver iniciativas, projectos e recursos – a coroa da moeda – e as condições para que os cidadãos possam mobilizar as suas capacidades, ambições e aptidões, para a viabilização desses projectos, aos quais se associam, sempre, riscos mais ou menos elevados. Por exemplo, para os promotores, no caso de uma start-up, os riscos são enormes. Os dados indicam que menos de 10% das iniciativas de criação de micro e pequenas empresas ultrapassam os primeiros 3 anos e destes mais de 50% fracassam ao fim dos 6 anos.

A realidade empreendedora é muito cruel para quem toma essa opção, por isso, é mais fácil «arranjar» um emprego. Se for no Estado tanto melhor, mesmo que seja mal remunerado, razão por que as políticas do Estado se orientam, sobretudo, para fomentar o emprego e a empregabilidade, o que justifica a sobrecarga da burocracia, exigente em competências administrativas. O mundo empresarial é muito difícil. Conhecem-se, em especial, os lados positivos, envolvendo os projectos que alcançam sucesso. Esquecem-se tantos projectos que fracassam, a grande maioria, pelas mais diversas razões, de ordem organizacional umas e fruto da adversidade do mercado outras. Em tantos casos pelo peso burocrático do Estado e por insensibilidade. Só quem alguma vez empreendeu conhece o peso da adversidade criada pelo Estado. Um pesadelo. Organiza-se para cobrar impostos e fazer exigências, das quais salienta-se a ‘malha da burocracia’, quase sempre sem compreender os efeitos de asfixia sobre as empresas, quando mais necessitam de apoios. Vezes sem conta o Estado assume que não quer compreender as dificuldades e os cidadãos.

Esta nota de referência suportada na experiência prática e em estudo ao longo de muitos anos, serve para relevar a afirmação sobre a elaboração do documento da ENM 2030 que apresenta uma boa narrativa, mas distante do país concreto. Foca-se em

“promover um oceano saudável para potenciar o desenvolvimento azul sustentado, o bem-estar dos portugueses e afirmar Portugal”,

ao mesmo tempo que considera

“o seu desenvolvimento económico um dos grandes objectivos desta década”.

Tratam-se perspectivas contraditórias na forma e no conteúdo, por isso, os resultados espelham o enorme atraso económico do País. Observe-se que o documento referido apresenta 10 objectivos, mas apenas o nono objectivo sobre a reindustrialização se foca nas empresas, todos os demais tratam de alterações climáticas, emprego, segurança alimentar ou literacia do Oceano. Questões de institucionalização.

Se a MOEDA de um lado se refere à política e do outro à economia, a aposta estratégica não deverá seguir a lógica da satisfação primacial da política e das políticas, suportadas, essencialmente, em instituições e empresas públicas, que em geral, em termos práticos, condicionam a economia. A aposta deve centrar-se na economia e tratar as múltiplas actividades económicas, algumas de natureza pública e a maioria de natureza privada, com ênfase para os empreendedores, promovendo condições de desenvolvimento de um modelo económico, para a realização de projectos e empresas e simultaneamente reconhecer os limites e papel das opções políticas. Esta orientação é reversa da seguida pela ENM 2030. Claramente, deve estabilizar orientações e o enquadramento económico, promover incentivos para a iniciativa empresarial, mobilizar a capacidade empreendedora, à qual se associa o risco económico e o risco financeiro, e desenvolver verdadeiros empreendedores na economia azul.

Portugal dispõe de uma plataforma continental excepcional a nível mundial, que lhe confere importância, na medida em que aproveite as oportunidades e saiba utilizar esses extensos recursos

Portugal dispõe de uma plataforma continental excepcional a nível mundial, que lhe confere importância, na medida em que aproveite as oportunidades e saiba utilizar esses extensos recursos. O documento envolve académicos e profissionais experientes e conhecedores dos mecanismos da administração pública. Porém, verifica-se, numa perspectiva de longo alcance, que até hoje não se tem conseguido tirar partido, de forma concludente e visível, do MAR, promovendo mais e de forma diferente as actividades económicas, no quadro de um ciclo longo, verdadeiramente criadoras de riqueza. Esta reflexão é fundamental realizar e compreender. Com as iniciativas empreendedoras, fomenta-se o desenvolvimento de empresas e outros projectos e a criação de novos empregos. Não há países ou regiões desenvolvidas sem empresas competitivas, que se diferenciem, nomeadamente, pela capacidade de iniciativa e criatividade, sentido de oportunidade no mercado, capacitadas com massa crítica, dispostas e preparadas para enfrentar as dificuldades do negócio. Para o fazerem sabem que assumem múltiplos riscos, indiferentes para o Estado. A actividade económica não se compadece com atribulações burocráticas, não obstante, são necessárias as instituições como estruturas de referência e com o seu papel regulador.

Contradições de um país marítimo

Como país marítimo, Portugal apresenta diversas e importantes vantagens competitivas, nomeadamente, a sua posição geoestratégica, a extensão da plataforma marítima, a tradição marítima e identitária e a pujança académica, com relevo para as competências científicas e de investigação em áreas afins. A qualidade das Universidades portuguesas confere competências reconhecidas internacionalmente.

Quais são os motivos porque Portugal e os portugueses não valorizam a economia do MAR? Porque não se desenvolvem de forma estruturada e consistente as actividades ligadas ao MAR? Quando se observa o estuário do Tejo, o estuário do Sado, a ria de Aveiro ou a ria Formosa, quais as razões por que é tão reduzido ou inexistente o movimento de embarcações de recreio ou outras naqueles extraordinários espelhos de água? Reconhecendo que os países do centro europeu e o Reino Unido, por exemplo, possuem uma actividade náutica, desportiva e de recreio de elevado nível, o que leva Portugal ao seu alheamento? Qual a razão por que o país não é internacionalmente reconhecido como referência na construção de embarcações? E no campo da manutenção e reparação de navios e outras embarcações? Qual a razão por que não se constroem marinas de recreio e outros espaços de estacionamento de embarcações, espalhados pelo país? Por que não dispomos de pontos de amarração em quantidade mínima que sustente a actividade da náutica de recreio como desígnio nacional? O que faz com que o país não disponha de aquaculturas e instalações offshore capacitadas para competir, em dimensão, no mercado internacional? Estes são alguns exemplos de questões para as quais há dificuldade em responder.

Quando se juntam empresários e profissionais experientes, reclamam e lamentam as dificuldades, para fazer seja o que for, sem que o Estado se estabeleça na burocracia, assuma respostas com pouca clareza e em tempo útil, realize exigências de todo o tipo, em muitos casos incompreensíveis, não respeite protocolos e a legislação que elabora, calcorreie uma relação de prepotências explícitas ou deduzidas, tantas vezes com ameaças mais ou menos veladas, ao mesmo tempo, seja fortemente incumpridor quando reclama o máximo rigor aos cidadãos e empresários, etc., etc. É um rol de lamentações na proporção directa do gosto e emoção que os portugueses devotam ao fado e aos fadistas. Conseguem-se fazer voar as «vacas», mas há dificuldade em fazer navegar os veleiros nos nossos estuários e rios, por exemplo, nos rios Minho e Guadiana, este com 79 km navegáveis com a maré, até às proximidades de Mértola. Uma pérola, com Alcoutim no percurso e a aldeia do Pomarão.

Somos um país marítimo que não estimula os seus marinheiros, que sonha com o MAR dos navegadores de antanho, que conceberam a grandeza do país. Dispõe de recursos marítimos extraordinários, servidos por um MAR imenso, que não aproveita com utilidade e sustentabilidade. Também, o tempo próprio é um desperdício, na mesma linha do que ocorre com as infra-estruturas de transporte. Um país de pequena dimensão tem de virar-se para o mundo, dispor de uma economia aberta e dinâmica, apoiada no mérito e na competência.  Em vez de potenciar as energias, regala-se em as destruir sem proveito. Para desenvolver o projecto de Sines ou o projecto de Alqueva ocorreram dramas, contestações, imposições, avanços e recuos, até que aos poucos lá foram avançando os projectos, nunca verdadeiramente concluídos e realizados, como sonhado na sua dimensão económica, para que se aproveitassem aqueles enormes recursos. Uma saga que continua, hoje com a economia do MAR ou o Oceano azul, na justa medida do contraditório, em que se afirmam os grandes desígnios e retumbantes ideais, para logo de seguida, na sua concretização, se apoucarem com tremendas dificuldades.

O problema central e bem identificado, congrega dois requisitos. Um, de natureza cultural, no qual se identifica o sentido voluntário, generoso, afectivo e aberto da generalidade das pessoas, capazes de tremendos feitos quando mobilizadas por grandes causas; o outro, tem a ver com o monstro do Estado, no qual todos estão atados, através e com ele disciplinados, comandados e manietados, sem capacidade para reagir de forma construtiva. As acções que envolvem o Estado são desgastantes, consumidoras de energia e prepotentes. Há um sentimento de impotência associado, que destrói e, por isso, sacrifica e desmobiliza. A economia do MAR está encalhada e assim vai continuar, infelizmente, por muito tempo, a não ser que consigamos redimir o Estado e apostar no mérito e na iniciativa empreendedora.

A riqueza do mar faz toda a diferença

A imensa riqueza do mar está disponível para se aproveitar e desenvolver, salvaguardando questões de equilíbrio e sustentabilidade. Duas perspectivas simples para enquadrar as actividades baseadas no MAR. Uma, como meio de transporte marítimo, recreação e usufruto pessoal. Outra, como fonte de recursos compósitos. A plausibilidade do seu aproveitamento exige compreender o alcance do conceito Economia do MAR e o seu papel a favor das comunidades e cidadãos.

Destruir o mar representa acabar com a vida, razão por que hoje grande parte do foco reside em questões de segurança, soberania, climáticas, poluição, descarbonização e afins. Neste quadro, a literacia é muito relevante, mas é uma providência, quando a questão relevante deriva de saber como aproveitar, de forma sustentada e equilibrada, os recursos marítimos e marinhos, para o que contribui de forma central o trabalho e esforço da ciência e investigação científica. Nestas perspectivas o papel do Estado é único, mas redutor, pois a realidade vai muito além.

O maior avanço que marca a grande diferença, reside em saber como desenvolver as múltiplas actividades e negócios associados ao mar, de forma equilibrada e sustentável, ao serviço do bem-estar das pessoas e das sociedades. Para isso, é essencial a ECONOMIA, que o mesmo é tratar de actividades, negócios e empresas. No século XXI só é possível assegurar o desenvolvimento se cuidarmos com rigor e competência das empresas, compreendendo e apoiando o papel dos empreendedores, como agentes de imaginação, criatividade, iniciativa e de risco, sem os quais é muito difícil criar riqueza numa economia de mercado.

Não é plausível tratar o MAR como se tratam os recursos da terra, com consequências que hoje são muito visíveis e que obriga governantes de todo o mundo a tomar medidas de precaução e outras de exclusão para salvaguardar condições de vida. Não é possível acreditar no desenvolvimento a qualquer preço, malbaratando recursos e desprezando outros. Isto não pode ocorrer com o MAR, daí que faça toda a diferença, desde logo, porque o mar representa o maior habitat de vida marinha, a par de outras condições de sobrevivência das espécies, entre elas, a vida humana.

A zona económica exclusiva portuguesa (ZEE) é uma preciosidade que confere ao país oportunidades de desenvolvimento extraordinárias, mas tem de se apostar na economia do mar de forma estruturante, estratégica e organizada, concedendo aos agentes económicos condições de iniciativa sustentadas. Não se pode apoiar uma determinada actividade num certo momento e em outro momento criar enormes dificuldades, explorando-o, tendo como consequência provocar-lhe o insucesso.

As actividades económicas baseadas no mar são as mais diversas se forem estimuladas as condições. Vão desde o transporte marítimo e infra-estruturas de complementaridade, portos comerciais e outras, as actividades recreativas como as marítimo-turísticas, a engenharia naval e respectivos estaleiros de construção em diversos materiais, como sejam os materiais compósitos, e reparação naval, a aquacultura offshore e pesca, as indústrias de transformação de pescado, os sectores emergentes da biologia azul, engenharia oceânica, energias renováveis, recursos marinhos e outros.

A academia e a investigação são cruciais para diferenciar e qualificar as pessoas e aproveitar com competência os recursos marítimos e marinhos. Estas actividades bem enquadradas numa política nacional para o mar que seja realista e tratada por quem detenha competências reconhecidas e com experiência, deverá originar condições para o surgimento de clusters devidamente organizados e capacitados, com empresas competitivas ao nível do mercado europeu e mundial. Portugal sendo uma pequena economia, deveria apostar em competências industriais e empreendedoras num ciclo de longo prazo, fundamental para assegurar o desenvolvimento e a sua sustentabilidade. Neste âmbito, sim, o Estado, então, assegura as outras iniciativas de natureza institucional, de enquadramento e regulação. Os países pequenos só conseguem obter massa crítica competitiva se a sua economia for aberta ao exterior, dotada de empresas com capacidade para competir no mercado internacional.

Notas finais

O tema da cultura marítima e da importância do Mar para Portugal é determinante para a economia portuguesa, a longo prazo, se pretender ultrapassar a sua pequenez e nível de atraso económico e se seriamente quiser apostar no desenvolvimento. Não pode continuar a privilegiar os processos burocráticos, a centrar toda a sua energia em construir um Estado megalómano e consumidor de energia. A força de uma sociedade reside nos seus cidadãos, na capacidade de iniciativa e na energia que, em conjunto, apostem na inovação com criatividade e, assim, aproveitar os recursos naturais.

Portugal é um país marítimo que não aproveita o mar, porque o modelo económico que persegue não o permite e as razões são bem conhecidas. A alteração das políticas deve congregar a alteração dos processos e confiar que os portugueses são capazes de construir grandes projectos, quando devidamente enquadrados, motivados e mobilizados. Para isso, o Estado não é adequado para o fazer, da forma como procede, orientado para a cobrança de impostos e para decisões de curto prazo.

Autor: J. Augusto Felício

Professor Catedrático da Universidade de Lisboa