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Roll Under Beethoven ou um Concerto de Natal a 250 Metros de Profundidade

Eng. Artur Manuel Pires Membro da Direção da CMP-LNP

19/12/2024

Fomos detetados

Disse o Chefe de Máquinas.

Pouco passava da meia-noite de vinte e quatro de dezembro, com o submarino a fazer 12 nós, a duzentos e cinquenta metros de profundidade, em pleno Atlântico Sul.

O Comandante já estava de pijama, mas conservava entre os dentes um charuto Romeu & Julieta nº 2 apagado, e nos lábios, o último andamento do Adágio y Allegro, Opus 70, de Robert Schumann.

Como é que soube?

O Chefe informou-o de que o Operador de rádio tinha recebido uma mensagem vinda do outro lado.

O outro lado. Enquanto se começava a vestir, o Comandante pensou que o muro de Berlim dividia bastante mais o mar do que qualquer outra coisa. Até Tordesilhas. E fazia sentir-se ali, mais premente e presente, do que na maldita cidadezinha alemã.

Mas agora era necessário ir ver o problema, e o mais perto possível.

O Comandante gostava de música e de silêncio, e da mistura maravilhosa das duas coisas. Como em Claire de Lune, claro.

Ou na frase mágica de Sacha Guitry: o silêncio que se segue a um trecho de Mozart, ainda é de Mozart.

Já o Chefe, gostava de cremalheiras, cambotas e pistons, e considerava a música um ruidinho irritante de fundo, que o impedia de usufruir plenamente do maravilhoso barulho de um motor a funcionar à perfeição.

Aquele concerto de Natal tinha sido devidamente autorizado pelo Almirantado, juntamente com o programa.

Música de câmara, lírica e intimista. Schumann, Ravel, Schubert, e Debussy.

Nada dos arrebatamentos sinfónicos das cavalgadas orquestrais, que iam ser ouvidas de um polo ao outro.

Mesmo assim, tinham sido apanhados.

O Comandante tinha levado dois anos a formar aquela orquestra, quase aquele tempo todo para arranjar um segundo-violino em condições, e tinha-o finalmente arranjado fardado de eletricista num submarino gémeo do dele. E mesmo assim, por troca com um canalizador harpista que não lhe servia para nada a bordo.

E como é bom de ver, nem o eletricista percebia alguma coisa de eletricidade, nem o canalizador de canalizações, alguma coisa que dificilmente se ensina nos conservatórios.

Mas fosse como fosse, ele tinha acabado por constituir a sua orquestra de câmara. A um excelente quarteto de cordas, formado por três violinos e um violoncelo, tinha acrescentado um clarinete.

O Comandante vestiu um arremedo de farda, mesmo tendo em conta os padrões de vestuário usado no interior dos submarinos, e deslocou-se ao posto de rádio, acompanhado do Chefe.

O Operador de rádio passou um papel para as mãos do Chefe, que o passou para as do Comandante. O Comandante lamentou profundamente não poder fazer o mesmo com mais ninguém, e muito contrariado leu em voz alta:

Pedem para tocarmos a sonata à Kreutz

Naquele momento os três homens estavam absolutamente sozinhos no universo, tão separados da noite sideral que estava lá fora, como dos outros quarenta e nove homens que estavam ali confinados com eles.

E depois havia todos os outros. Aquelas missões seriam impossíveis, sem a certeza que todos tinham, de que lá em cima, alguém sabia onde é que eles estavam, e acompanhavam-nos no que fosse preciso. Era assim que a Marinha fazia com todos os seus, mas com os submarinistas ainda mais.

O problema era que do outro lado, também sabiam onde é que eles estavam.

O Comandante, agora ia responder ao Chefe, que ia responder ao Operador de rádio. Mas entretanto, releu a mensagem do Almirantado que autorizava o concerto, e terminava a desejar as maiores felicitações a toda a tripulação.

Então o Comandante tirou o charuto da boca, rodou-o suavemente, entre o polegar e o indicador direito, e disse:

Transmita que não temos piano

Depois tirou uma longa puxada do charuto apagado, e concluiu com um sorriso:

E um feliz Natal

Autor: Eng. Artur Manuel Pires Membro da Direção da CMP-LNP