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Mar português por direito

Afonso Branco Duarte - Cadete do Mar premiado, confrade CMP – LNP

24/10/2024

O Mar é português por tradição. Tomando este conceito na pureza do seu sentido etimológico, podemos afirmar que o Mar é algo que nos foi verdadeiramente entregue (traditio). Todos nós nascemos com a incontornável e imponente vizinhança do oceano e da identidade portuguesa que nele se formou e consolidou. Assim, em primeiro lugar, o Mar é algo que nos é entregue como herança da natureza e legado da História.

Mas acrescente-se: o Mar é português por Direito. Tomando uma perspetiva axiológica, é evidente que assim o seja: o Direito tem por finalidade a defesa da Justiça, entendida como o gesto de dar a cada um o que lhe é devido. Neste sentido, o Direito deve consagrar e garantir a justa atribuição do Mar ao Povo que o fez seu por meio de grandes feitos e empresas. Por outro lado, considerando uma perspetiva mais positivista (e atual) de Direito, a solução não deixa de ser a mesma: há Mar que é efetivamente português por imposição normativa. Em qualquer dos casos, e tendo por certo que a tradição marítima está amplamente consolidada na sociedade portuguesa, o mesmo não se pode dizer quanto à consciência jurídica dessa realidade.

O dinamismo da ciência jurídica é um excelente indicador das mudanças na sociedade. Se têm surgido novas áreas do Direito (entre muitas outras, o Direito da Inteligência Artificial e o Direito do Desporto), é porque as realidades que lhes subjazem têm cada vez mais importância para os cidadãos. Em sentido inverso, se determinada tipologia de relação interpessoal perde força e relevância, as normas que a regulam seguem impreterivelmente o mesmo caminho. Deste modo, a importância que é atribuída ao Direito Marítimo em Portugal é reveladora da importância que é conferida ao próprio Mar.

Felizmente, o atual panorama dá-nos algumas razões de esperança. Estuda-se e investiga-se Direito Marítimo nas Faculdades (mesmo ao nível da Licenciatura), investe-se na publicação de estudos desta área e cria-se progressivamente uma cultura portuguesa de Direito do Mar. Neste ponto, cumpre referir que esta evolução se deve em grande parte a alguns doutos juristas que apostaram (não sem algum risco!) na promoção destas temáticas. É essencial que este movimento se verifique, não só porque revela um dinamismo social no sentido da valorização dos recursos marítimos, mas ainda porque o Direito é capaz de assumir uma função de “alavanca”. Ou seja, ao regular e estudar áreas outrora desconhecidas ou pouco aprofundadas, facilita e fomenta a implementação de projetos e investimentos nesse âmbito.

Note-se, porém, que esta preocupação encontra um fundamento muito mais profundo do que a mera promoção económica. Não nos podemos esquecer que alguns dos interesses de maior relevância para Portugal em domínio marítimo estão profundamente ligados à própria soberania do Estado. Assim o é, por exemplo, quanto à Zona Económica Exclusiva e ao projeto de extensão da Plataforma Continental. Ora, a defesa e manutenção da soberania estatal nestes âmbitos dá-se, em tempos de paz, sobretudo por meio de instrumentos e processos jurídicos, pelos quais se reage aos ataques e violações praticados (ou a praticar) por outras entidades estatais ou privadas.

Reforçada a importância de uma valorização do Direito Marítimo português, resta-me realçar aquele que constituiu, na minha opinião, um dos principais desafios para este ramo do saber: transmitir aos portugueses que existe um vasto Mar que lhes pertence por Direito. Ou seja, que existe um conjunto concreto de direitos e deveres legalmente reconhecidos que lhes diz respeito. Como podemos pedir que a Nação reclame o que é seu se nunca o damos a conhecer devidamente? Como podemos pedir que se exija ao poder político uma proteção efetiva dos recursos marítimos nacionais quando não existe uma consciência fundamentada acerca da sua legítima propriedade? Assim, aliada à razão de Direito, a Tradição ganhará força e credibilidade e, porventura, um novo ânimo.

Autor: Afonso Branco Duarte - Cadete do Mar premiado, confrade CMP – LNP