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Ao Aquário Vasco da Gama, de Elétrico

Eng. Artur Manuel Pires

31/05/2022

Otária na entrada do Aquário Vasco da Gama (imagem João Gonçalves)

São peixes até debaixo d’água…

João Guimarães Rosa, no Aquário de Berlim, algures entre 1938 e 1942

Julgo que me contaram que uma qualquer tia minha, de uma terra para trás de Trás-os-Montes, veio a Lisboa ver o mar, como prenda do sucesso no exame de admissão ao Liceu.

No regresso, não apenas descreveu maravilhosamente o que tinha encontrado em Cascais, como ainda disse que tinha visto o mar por dentro.

E foi desta maneira, que naquela terra se ficou a saber da existência do Aquário Vasco da Gama.

Alguns anos depois, eu próprio já tive a grata oportunidade de dizer que pertenço a uma geração que cresceu acompanhada de três programas imbatíveis: uma ida ao Jardim Zoológico, uma noite na Feira Popular e uma visita ao Aquário Vasco da Gama.

Naquela altura, ia-se ao ponto de criar intimidade com determinados peixes, que respondiam à nossa presença mais atenta, com um abanar galante de cauda. Chegávamos a acreditar que alguns, escondidos atrás das pedras do fundo, vinham até nós ao sabor de um reconhecimento cúmplice.

E o que é verdade, é que ao contrário de certas constatações que são miseravelmente atraiçoadas pela memória, o prazer de uma ida ao Aquário Vasco da Gama, conserva-se inalterável.

E para o programa ser mais que perfeito (tal como o tempo do verbo) deve ser cumprido de Elétrico.

Dos amarelos, dos abertos, da carreira nº15, com passagem no Terreiro do Paço, Vinte e quatro de julho fora, Junqueira, Jerónimos, Torre de Belém ao longe, Pedrouços e paragem no Jardim de Algés, a uns tantos passos do Aquário.

Do portão da entrada ao da saída, que é o mesmo, num truque perfeito para o convite a uma nova e merecidíssima visita, o Aquário não deixa um só momento de nos impregnar de admiração e charme.

Muito bem conservado pela Armada, mais precisamente pela sua Comissão Cultural de Marinha, todo o espaço nos lembra continuamente uma forma de viver em que a informação sendo estática, não era menos rigorosa.

Parada, e para nossa perpétua fruição, sem fluir constantemente numa ultrapassagem vertiginosa de dados (este que acabou de substituir aquele, e que vai de imediato ser substituído por aquele outro) rumo se não ao futuro, pelo menos ao on-line.

Em quadros explicativos tão explícitos quanto requintados, é evidenciada a evolução das espécies, afinal a da Humanidade, desde o primeiríssimo peixe, vindo por aí fora, pressentindo-se a superação do nosso estágio em macacos, até à admissibilidade da chegada gloriosa à perfeição da Audrey Hepburn.

Complementarmente, já junto aos aquários, entre o aspeto bisonho dos peixes das grandes profundidades, que carrancudos parecem ficar irritados com o simples fato de estarem a ser observados, e o feérico dos tropicais, todos eles graciosidade e dádiva de cor, ficamos com a certeza de que foi a luz – talvez na forma de calor – a origem da vida. E que aquela, tanto deve à formulação matemática dos laboratórios de termodinâmica quanto ao fiat lux bíblico.

Todo este refinamento cultural é reforçado pela arquitetura, que sem ter a perenidade das pirâmides, tem, contudo, a garantia dos materiais que permitem a viscosidade do coar do tempo: mármore, madeira, vidro, ferro, couro, papel e pano.

E no entanto, a totalidade do espaço, trata da glorificação da designada Era da Exploração, que caraterizou o frenesim da segunda metade do século XIX, e princípio do XX, das sociedades mais avançadas daquela época, com um destaque muito particular, e no caso que mais nos interessa, para as também assim designadas Campanhas Oceanográficas.

Mas o sentido de exploração mantém-se, sobretudo na Sala da Janela para o Oceano, inteiramente interativa, dominada pelo seu ecrã gigantesco, muito saudavelmente virada para o público mais jovem, e servida por uma programação de excelente qualidade.

Inaugurado a vinte de maio de 1898, para honrar o quarto centenário da nossa descoberta do caminho marítimo para a Índia, por interceção muito direta do Rei D. Carlos, e tendo por núcleo os seus exemplares de zoologia marinha, recolhidos, tratados e colecionados pelo monarca, a bordo dos já mitológicos yachts Amélia.

Sendo um dos Aquários mais antigos do mundo, o que revela o permanente interesse dos portugueses pelas coisas do mar, aqueles barcos ficaram indelevelmente gravados no Museu Oceanográfico do Mónaco, fundado pelo Príncipe Alberto I, profundamente ligado a D. Carlos por uma amizade e colaboração mútua em oceanografia, fundado doze anos mais tarde do que o estabelecimento do Dafundo, e que no topo da frontaria tem inscritos, para além dos seus próprios barcos, Hirondelle e Princess Alice, o nome de três grandes navios oceanográficos da época: Talisman, Buccaneer e Amélia.

Não sei quanto mais tempo a guarda confinada de animais vivos para nosso desfrute, vai continuar a resistir à enorme pressão daqueles que entendem – provavelmente com razão – que a natureza apenas pode ser observada nos locais onde a mesma existe, livre do condicionalismo do seu aprisionamento.

Acontecendo a devolução dos peixes ao mar, algum destes há de transportar consigo a lembrança dos olhos deslumbrados de uma criança, a olhar para ele, com as mãos a servir de baias, com o nariz esborrachado contra o vidro, e um sorriso na cara.

Autor: Eng. Artur Manuel Pires

Chefe da Divisão de Gestão do Porto de Sesimbra