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Da Importância do “Cold Ironing” na Poluição Marítima

Joaquim Bertão Saltão

30/07/2021

Cold ironing no porto de San Diego, California (imagem Cody Hooven)

As emissões poluentes dos grandes navios e a importância do ”Cold Ironing” para mitigar o seu efeito, em porto.

O Cold Ironing é uma nomenclatura actualmente usada, em inglês, para designar um sistema que esteve em uso no tempo dos navios com máquinas alternativas e turbinas a vapor.

As expressões em inglês são fáceis de traduzir para os portugueses que, normalmente, entendem bem o inglês. Todavia, há uma que, embora seja um sinónimo idiomático, foge ao contexto e precisa, para alguns, de uma explicação.

Cold Ironing, Shore conection, Shore-to-ship-power (SSP), Alternative Maritime Power(AMP) On Shore Powwer Supply (OPS), High Voltage Shore-Side Conection (HVSC).

O Cold Ironing (CI) é o termo mais consensual para designar a tecnologia que vamos abordar. Era a ligação eléctrica de um navio a terra, quando atracado, para satisfazer as suas necessidades energéticas, com o fim de desligar as caldeiras. Desta forma, permitia a poupança de carvão ou nafta, que eram os combustíveis usados no tempo dos navios a vapor: os célebres “Vapores”. Este procedimento possibilitava, ainda, proceder aos trabalhos de manutenção preventiva ou correctiva.

O apagar das caldeiras originava o arrefecimento da casa das caldeiras e da casa das máquinas, daí a denominação Cold Ironing, que basicamente significa “arrefecimento do ferro”.

Nesses tempos, ainda não havia a preocupação da poluição. Era o tempo do vapor, a força motriz capaz de impelir os pequenos e grandes “Vapores”, cuja dimensão e prestígio se avaliava pelo número de chaminés de que estavam dotados. O seu número era em função das caldeiras instaladas, o que significava grande potência de máquina e, por sua vez, grande velocidade.

Não havia o cuidado a ter com problemas ambientais. Para os observadores em terra, a fumaça que saía das chaminés dos navios, quanto mais abundante fosse, não significava uma má combustão do combustível usado, mas sim a potência que se queria imprimir ao navio.

O povo extrapolou o conceito de que quanto mais caldeiras tinha um navio, mais veloz era. Portanto, mais o navio se afirmava entre os seus pares, e instituiu a voz popular a metáfora muito usada pelas gentes do mar, “Mais caldeira e menos bandeira”, para definir a presunção das pessoas “que não têm onde cair mortas”.

Note-se que o celebre TITANIC era dotado de quatro chaminés, mas só três é que funcionavam como tiragem das caldeiras. A quarta chaminé era só para ventilação das cozinhas e máquinas auxiliares. Quase podemos dizer que era uma simples ostentação majestática e deduzirmos ter “mais bandeira do que caldeira”.

O CI é uma tecnologia que, embora usada no tempo dos “vapores”, há pouco mais de 21 anos voltou a adoptar-se, com êxito, como uma inovação tecnológica para fornecer energia aos navios atracados em porto, carecendo de instalações apropriadas, com investimentos elevados, mas cujo retorno do investimento depende do número de utilizadores e dos benefícios que resultam dos custos de externalidade.

 

Dos custos vs benefícios do CI

Os pioneiros do Cold Ironing foram os portos de Jeneau, no Alaska, o de Gotemburgo e portos da Costa Oeste dos Estados Unidos da América, com o desígnio de tornar os portos mais “verdes”.

O Cold Ironing, porém, é um sistema que tem alguns constrangimentos, a saber:

  • Falta de uniformização global do sistema, que implica normas a adoptar por todos os navios e portos;
  • O preço da electricidade a fornecer pela rede local de distribuição de energia deve ter um custo inferior ao que o navio pode produzir com o seu combustível autorizado, o que constitui o factor mais importante e aliciante por parte dos utilizadores;
  • A construção de unidades de produção local dedicadas a este sistema, ou novas linhas eléctricas para trazer a energia de alta voltagem aos locais de abastecimento;
  • O custo de adaptação dos navios já construídos ou o aumento do preço das novas construções adaptadas ao sistema;
  • A adaptação das infraestruturas portuárias, tendo em conta a corrente a fornecer aos navios construídos ou a construir, com voltagens de 220 v ou 110 v e frequências de corrente de 50 ou 60 Hz (as mais usadas).

Segundo um estudo da ENTEC[1], em 2005, o CI seria uma tecnologia atractiva, em termos económicos, para o utilizador com um preço do combustível acima dos €450/t-métrica.

No momento em que escrevo, o Ultra-Low Sulphur Fuel Oil (ULSFO) max. 0,1 % S, permitido usar em porto, custa em Rotterdam 431,60€ /t-métrica.

Um motor de combustão interna consome, em média, entre 175 e 200g de combustível para obter um kwh, dependendo do ano de construção, da potência e do tipo do motor, a 4 ou 2 tempos. Tendo em conta o preço supracitado do ULSFO max. 0,1 % S, cada kwh importaria, para um consumo de 180g/kwh, em 0,0787€.

Está Portugal preparado para fornecer energia aos navios por aquele preço? Os portugueses pagam à EDP, por cada kwh consumido, 0,277€, com as taxas e taxinhas adicionadas.

A tecnologia CI é um investimento que tem que ser bem ponderado, tendo em conta o número de navios, a sua periodicidade de escalas e a suas necessidades de energia.

Mais importante que o custo-benefício do investimento, são os custos de externalidade reflectidos no meio ambiente, com especial incidência na saúde pública.

Segundo um estudo da ABB Marine & Ports, de 2010, os navios emitiam 10 a 15 % de NOx e 6% de SOx, relativamente às emissões globais, e são responsáveis por dezenas de milhar de mortos devido a doenças cardiopulmonares e cancro.

Desde 1973, com a Convenção MARPOL e as sucessivas emendas, tem-se tentado reduzir as emissões perniciosas produzidas pelos navios, mas a solução só terá um fim sustentável quando o hidrogénio for implementado como combustível marítimo e produzido através de energias renováveis.

Por enquanto, o hidrogénio constitui um obstáculo à sua utilização como combustível marítimo para navios de longo curso. Chamo-lhe um “Trilema”, tendo em conta a “Produção, Armazenamento a bordo e a Distribuição/Abastecimento”. Mas é, no actual estado de arte, o único combustível que elimina as emissões poluentes, desde que produzido com energias renováveis.

Actualmente os navios estão a usar o LNG como combustível marítimo, por ter algumas vantagens sobre os combustíveis tradicionais:

  • É mais barato;
  • Reduz em 85% as emissões SOx;
  • O CO2 é reduzido em 25 %;
  • As PM diminuem para 98%, comparados com os combustíveis tradicionais;
  • Tem maior eficiência energética, 6,2kwh/kg, enquanto o MFO tem 5,0kwh/kg, o MDO 5,4 kwh/kg e o metanol 2,5kwh/kg, o que o torna num combustível energeticamente rendível, a custo mais baixo.

Porém, o LNG emite metano, que é um gás de efeito de estufa: 7g por kg consumido com os motores a operar em regime máximo de serviço, e 23 a 26g com regimes mais baixos.
O metano contribui para o aquecimento global 28 vezes mais do que o CO2.

O armazenamento do LNG, comparado com os combustíveis tradicionais, requer maior espaço de armazenamento e, no caso de um navio de passageiros, cada m3 ocupado pelos tanques representa a perda de uma cabine de passageiros.

Até lá, como se tenta amenizar a “pegada ecológica”?

  • Reduzindo as percentagens de enxofre dos combustíveis;
  • Usando o LNG como combustível marítimo;
  • Aperfeiçoando as tecnologias de construção naval, com o fim de redução das potências a empregar;
  • A redução da velocidade dos navios, ou até o conceito “JIT” (Just in Time), de modo a que os navios cheguem ao porto só quando tiverem lugar para atracar, podendo regular a velocidade durante o seu percurso de forma a reduzir o consumo de combustível.

 

A pegada ecológica na navegação

A emissão de uma tonelada de CO2 é responsável pelo aumento da temperatura mundial de 0,00000000000015 º C.

Um estudo da CDIAC (Carbon Dioxide Information Analysis Center) efectuado em 2010, concluiu que com a concentração de CO2 acima de 350ppm (partes por milhão) a mudança climática fica descontrolada.

Actualmente, registaram-se 416,21 ppm, a mais alta concentração registada desde o início da sua medição em 1958, apesar de a pandemia COVID-19 ter revertido, globalmente, as emissões poluentes.

O maior predador do planeta Terra, o Ser Humano, em vez de perder tempo e dinheiro a tentar descobrir o caminho interplanetário para Marte, devia dar maior atenção ao seu habitat, porque Marte não é, decerto, o seu plano B quando o planeta Terra colapsar.

Outras alternativas têm sido os scrubbers que podem ser de circuito aberto, fechado ou hibrido.

Estes scrubbers são usados para remover as emissões de SO2 e PM (material particulado), mas não evitam as emissões de NOx e CO2. Podem remover 90% de SO2 e cerca de 60% de PM, mas os scrubbers de circuito aberto têm o inconveniente de descarregarem para o mar as águas usadas na lavagem dos poluentes. Estas, embora com o PH controlado, que não deve ser inferior a 6,5, de acordo com os “Regulamentos MARPOL- Anexo VI”, contêm hidrocarbonetos aromáticos policíclicos e metais pesados, que afectam a saúde humana e o meio marinho, contribuindo para acidificação dos oceanos, não sendo biodegradáveis e entrando na cadeia alimentar.

Os scrubbers de circuito fechado usam água doce e soda caustica para neutralizar o enxofre. As soluções de lavagem são recolhidas em tanques, a fim de serem tratadas e descarregadas em terra, conduzidas para aterros dedicados a este efeito.

Há já países que impõem regras ao uso de scrubbers, não podendo ser usados em porto ou com combustíveis com teores de enxofre acima de determinados valores. Mesmo com todos estes inconvenientes e condições, em 2020 havia 4341 navios dotados de scrubbers.

Um estudo Finlandês / Alemão concluiu que usando scrubbers em motores accionados a HSFO (High Sulphur Fuel Oil), estes emitem menos poluentes do que os que usam LSFO (Low Sulphur Fuel Oil). Embora cumprindo as recomendações “IMO 2020”, têm sido apelidados de “FRANKESTEIN FUELS” (combustíveis Frankenstein, referindo a personagem literária de horror), por serem responsáveis por uma série de acontecimentos de mar, nomeadamente devido às máquinas propulsoras avariadas e até explosões ocorridas recentemente com navios.

Também, nalguns portos, por representarem menos custo do que uma instalação fixa de CI, estão a ser utilizadas barcaças que produzem energia eléctrica com recurso ao LNG, para depois ser fornecida aos navios.

Estudos efectuados em 2020, sobre os navios que “praticam” os portos europeus e águas interiores, enquanto atracados, referem que estes irão consumir 3543 GWh, anualmente,
o que representa o equivalente a 0.1% de toda a energia consumida na Europa.

Nenhuma desta informação serve para diabolizar os navios, que inclusive são os meios de transporte que menos poluem, por km percorrido, relativamente a todos os outros meios de transporte. Repare-se:

  • Os maiores navios de cruzeiro consomem, enquanto atracados (hotelling), 11200kwh, valor variável ao longo do dia;
  • Um consumo de 7MVA polui tanto em NOx como 9000 automóveis e em PM como 3000 automóveis. Os 7MVA são suficientes para alimentar uma povoação de 6000 pessoas com boa qualidade de vida.

 

A Directiva da EC que dá “uma no cravo e outra na ferradura”

A Directiva 2014/94/EU

estabelece as normas a aplicar para a descarbonização dos transportes, mas no caso do fornecimento de eletricidade aos navios de mar a partir da rede terrestre é prioritariamente aplicada nos portos da rede RTE-T de base, e, noutros portos, até 31 de dezembro de 2020, excepto se não houver procura e se os custos forem desproporcionados em relação aos benefícios, nomeadamente os benefícios ambientais.”

Para finalizar, a transição para as novas energias necessita de um investimento de US$ 1,4 tn/ano (escala curta 1,4×1012), globalmente, para cumprir com a meta do “Acordo de Paris”.

Acresce que

o Tratado da Carta da Energia” (contrato “leonino” que em má hora foi assinado em Lisboa em 17/12/1994, entre os Estados Contratantes e os “Senhores do Crude Oil e Seus Derivados”), e que protege as infraestruturas fósseis, tem, alegadamente, dificultado a transição para as energias renováveis.

Entretanto, o Planeta Terra vai aquecendo à razão de 0,15 º C por década e, segundo o IPCC, quando chegar aos 4º C acima dos níveis pré-industriais haverá um descontrolo absoluto, desencadeando um vasto número de extinções, destruindo o sistema produtivo humano.

Nota do Autor: Não segue o Acordo Ortográfico

Autor: Joaquim Bertão Saltão

Comandante da Marinha Mercante / Licenciado em Ciências Náuticas e Tecnologias Marítimas / Perito e Consultor Marítimo