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DIA BOM PARA LER, COM REGATA AO FUNDO
Eng. Artur Manuel Pires Membro da Direção da CMP-LNP
09/08/2024
Dia bom para ler, com regata ao fundo
Com os dedos da mão tamborilo na capa dura dum livro, enquanto aguardo a partida do comboio.
Já não falta muito, a fazer fé, mais do que no horário previsto, no borburinho e frenesim que pressinto na máquina dispensadora de bilhetes.
E faz sentido, porque um grupo tenta arrancar do maquinismo perverso a sua passagem para o paraíso.
Oiço alguém dizer:
A máquina está perguntando se o bilhete é para Kuala Lampur?
E outro alguém esclarece lépido.
Diz que não. Cas-sss-cais!.
E no exato momento em que o comboio começa a rolar em cima dos carris, julgo que o grupo conseguiu entrar. E depois tenho mesmo a certeza, quando passam pelo meu lugar, à procura de uma carruagem só para eles, porque era outra coisa que a máquina lhes tinha prometido.
Com o comboio a rolar francamente, o mar começa a aproximar-se assustadoramente da janela de bombordo.
Pela janela, agora, consigo ver uma regata inteira parada ao redor do Bugio, com os barcos atarraxados ao mar, à espera do menor sinal de brisa, que talvez já não venha neste milénio.
Sou arrancado do meu devaneio por uma senhora que está sentada ao meu lado, e que antes tinha observado sorrateiramente a olhar assustada para os pés, com receio de ver aparecer água debaixo deles na altura em que o comboio corria rente ao rio, e que agora sem qualquer inibição me pergunta se as carruagens têm coletes de salvação.
Tranquilizo-a. Esclareço, que está tudo a correr conforme previsto e em absoluta normalidade, e informo que as carruagens não têm colete de salvação.
A senhora agradece a explicação tranquilizante, tanto mais que agora o comboio, depois de atravessar um túnel muito curto, circula francamente em terra firme.
À chegada a Cascais, dirijo-me para a saída automática da estação, e reparo que o grupo simpático que também veio do Cais Sodré está com problemas para sair.
Não fico nem um bocadinho admirado.
Saio e deixo-me escorregar através de ruelas que serpenteiam entre fachadas magníficas de casas, com muros repletos de vegetação, e paredões que impedem que tudo isto não resvale para cima de uma formação contínua de pedras, que uns poucos metros em baixo, separam a vila do mar.
Corto rente pela messe dos oficiais da Armada, estou na baía, e mal inicio a subida para a Cidadela dou com a faina dos pescadores à minha esquerda, misturada com a agitação de um grupo de jovens a aparelhar as suas embarcações, e a lança-las ao mar. É bom de ver, até porque o mar chega para todos.
Até para a regata. Deixo o olhar a pastar pelo rio fora e acima, e observo com satisfação que a brisa veio mais depressa do que estava a pensar, e as embarcações não desperdiçaram a oportunidade, enfunando as velas.
Viro à direita, quase deixo de subir, e tenho a visão muito agradável de uma alameda delicadamente sombreada por plátanos, que atravessa e corta o jardim da Igreja da Assunção, juncada de bancos de madeira assentes num chão terroso, rodeado de relva, arbustos, canteiros com flores diversas, e árvores várias, tudo muito bem combinado e tratado.
Está um dia magnifico.
Mas mesmo que não estivesse, eu ia lembrar-me de uma tia minha que o único programa da televisão que via era o boletim meteorológico, e depois de saber qual era a previsão do tempo para o dia seguinte, nunca deixava de dizer:
Dia bom para ler
A esta filosofia tão rigorosa e simples, eu acrescentei um banco de jardim.
Nada, nada melhor, do que ler sentado num banco de jardim. E contudo, é preciso merecê-lo.
As páginas do meu Guerra e Paz de Tolstoi, registam este entendimento, e ao longo do ano.
Estão marcadas com folhas dos plátanos, do Outono, pingos de chuva do Inverno, manchas roxas de cereja da Primavera, e com uma anotação a lápis, de que se trata do melhor livro do mundo, feita a seguir à última palavra do livro, seguida de uma qualquer data de um qualquer dia de Verão.
Mas o que trago hoje para ler, de forma alguma é inferior. A lenda de S.Frei Gil, de Eça de Queiroz.
Quando começo a ler o livro, já sei que Eça confessou um dia a Batalha Reis, num passeio pelo bosque de Saint-Cloud, nos arredores de Paris, e para lhe mostrar como eram as agruras de um escritor com a vida própria das suas personagens literárias, que tinha metido o bom do Frei Gil numa floresta, e que não arranjava maneira de saber como é que o ia tirar de lá.
É o que eu vou ficar a saber agora.
Os escritores têm um truque que consiste em deixarem o livro em que estão a trabalhar, numa altura em que sabem como é que vão pegar nele da próxima vez. Eu, enquanto leitor apaixonado, utilizou um semelhante, que consiste em deixar o livro depois de uma passagem particularmente gratificante. Desta forma, quando voltar a pegar nele, é precisamente ali.
Penso nisto, enquanto me certifico que entretanto, o dia se prepara para chegar ao fim.
Mas antes, ainda há tempo para uma última nota de prazer.
Pela alameda, agora pejada de sombra, o grupo que veio comigo no comboio passeia radiante, e todos têm estampado no rosto a serenidade de um dia belissimamente passado. Provavelmente, tanto quanto o meu. Fico feliz, porque na realidade, para eles as coisas podiam não ter acabado assim.
Afinal, quando passaram por mim no comboio, à procura da carruagem privativa, pude vislumbrar os bilhetes que tinham nas mãos.
Eram para as Caldas da Rainha, e para daqui a três anos.
Autor: Eng. Artur Manuel Pires Membro da Direção da CMP-LNP