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Um dia nas Regatas

Eng. Artur Manuel Pires

14/06/2023

Dedicado à minha tripulação de regatas, com quem tenho sofrido dos momentos mais deliciosos da minha vida, e em louvor dos extraordinários filmes dos Irmãos Marx

Nada produz um som igual à ausência de vento. Sobretudo em regata.

“Ali” disse um dos membros da tripulação “ali existe vento.”

O skipper levantou a cabeça do aro do leme, que ele usava como almofada, soergueu um dos olhos, e não pode deixar de constatar que ali existia vento.

“E sabes por acaso dizer-me” disse, voltando a afundar a cabeça nas duas mãos, as duas a agarrarem a enorme roda do leme “como é que vamos para lá?”

Ele não sabia. Mas sabia que tinha quebrado uma das regras sagradas a bordo de uma regata, segundo a qual o silêncio só deve ser interrompido por alguma coisa de jeito.

Como os palavrões, sem os quais os barcos também não andam. E mesmo correndo o risco, de colocar à prova a suscetibilidade de uma qualquer divindade eólica.

A restante tripulação ficou a olhar para ali, algumas milhas a estibordo, a ver o ventinho bom que uns tantos privilegiados aproveitavam para enfunar as velas, e saírem daquele marasmo fora, à pressa, e a tempo de se posicionarem a jeito na regata.

Cada um deles, rodando o pescoço em 360º, conseguia saber perfeitamente a posição de todos os barcos.

E o skipper nem precisava, porque desde a partida em frente ao padrão dos descobrimentos, que sabia o posicionamento relativo de toda a frota; as características dos barcos e a personalidade das suas tripulações. A sua era formada por um bando de marginais, incompetentes e insurretos, que para além disso eram seus amigos. E um deles até enjoava!

Tinha preparado tudo meticulosamente, aprovisionado o que era para aprovisionar, equipado o que era para equipar, ensaiado o que era para ensaiar. Tinha previsto tudo, menos aquela partida da meteorologia. Podia dormir tranquilamente agarrado ao leme, e continuar a regata, estava tudo controlado.

E naquela, havia sobretudo dois grupos a concorrer. Os tais felizardos que tinham conseguido chegar às imediações do Seixal, a tempo de aproveitar um resto de vento que soprava ali, e os outros que tinham sido apanhados em cheio a meio do rio, por uma acalmia feroz.

Nós éramos dos outros.

Uma regata começava sempre de véspera, e em casa de cada tripulante, com a preparação cuidadosa dos álibis que lhes permitiam estar agora ali, no meio do rio. Cada tripulante daqueles barcos em redor, tinha deixado relva do jardim por cortar, uma lista extensa de produtos do supermercado por comprar, deveres da escola dos filhos por fazer, para estar agora ali. Havia álibis em grupo que era imprescindível conservar; em linha, os mais simples, em estrela, os mais complexos. Alguns, os mais sofisticados, envolviam tripulações de mais do que um barco. A cumplicidade sobrepunha-se à rivalidade, e se um álibi caísse, caiam uma data deles. Dissabores num lar, significavam geralmente dissabores em cadeia.

Havia uma vaga ideia, de que a queda de um álibi arrastava uma data de outros, como na célebre doutrina do dominó, que fez a delícia dos estrategos ocidentais, durante a guerra fria no sudoeste asiático.

Um dos que permanecia para sempre nos anais das regatas, era de um refinamento extremado, apesar de ter tudo para não ser verdadeiro, e fala em alguém que ressuscitou em plena regata, passando pelos mais comezinhos, mas nem poar isso menos interessantes, do tripulante recrutado à força quando está tranquilamente numa esplanada à beira rio a ler o seu semanário preferido, e que tem a particularidade de ser absolutamente verdadeira. E mais: frequente.

“Vento.”

Disse baixinho um dos tripulantes, mas suficientemente alto para o skipper levantar a cabeça do leme, e cheirar o ar. Na realidade…

As tripulações aproveitavam a calmaria para comer, porque depois ia ser difícil. As tradicionais sandes com as tradicionais cervejas. Alguns mandavam os pruridos ao diabo, e ficavam apenas pelas cervejas.

Mas aquele tinha tirado do saco comum, uma sandes de presunto e alface, com a folha desta a sair da área do pão, um bom palmo e meio. E tinha sido na altura de levar tudo à boca, que tinha visto a folha verde a agitar-se.

Primeiro impercetivelmente, depois mais firme, e por último com galhardia.

Para não defraudar expectativas, ele tinha graduado as suas comunicações, subindo de tom e de entusiasmo, mesmo com risco de acordar as tripulações em redor da sua letargia.

Tarde de mais. À volta deles, também já todos tinham dado, com alface ou sem alface, por que o vento tinha voltado, e era uma correria e uma berraria danada para os cabos e as velas.

Do percurso da regata fazia parte a dobragem de duas boias, uma em frente a Santa Apolónia e a outra em frente a Cabo Ruivo. Era ali que as coisas iam acontecer e era para ali que todos se dirigiam.

Como era tradicional, metade da tripulação entendeu que a boia era para ser dobrada a bombordo, e a outra metade, a estibordo.

A voz roufenha que se ouvia na rádio, constantemente a chamar a atenção das embarcações para qualquer coisa que seguramente era importante, mas que ninguém conseguia ouvir, entre ruídos estridentes de ondas de megahertz mal sintonizadas, parecia tornar tudo claro. A boia não era para ser contornada, mas atravessada. Nem mais!

Contornar uma boia é o momento épico da regata. Os movimentos e os berros, de caça, folga, e vai bater, vai bater, misturados com os palavrões mais ásperos que existem na língua portuguesa, reduzem o cenário de uma qualquer ópera de Richard Wagner ao bucolismo da sala de leitura da biblioteca nacional.

As duas boias foram contornadas suficientemente mal, para a embarcação ficar em último lugar. Mas agora para lá, com o balão, ia competir apenas com o Airbus 320!

Entretanto, sem que se desse por isso, por cima de nós tinha-se formado aquilo que se chama a nuvem de regata. Uma nuvem localizada por cima de uma embarcação e que se desfaz em chuva torrencial só para aquela embarcação.

É claro que em terra também existem nuvens destas. Nuvens individuais que fazem chover apenas para um infeliz. Mas em terra, existe o guarda-chuva, e sempre se pode correr até um abrigo.

No mar o efeito é total e completo. A chuva cai em cima da tripulação indefesa, enquanto em redor brilha um sol radioso. Claro, mais palavrões!

E o que aconteceu foi que, talvez por causa da chuva de regata, o balão foi montado ao contrário. Mais palavrões!

Mas o pior estava para vir. Com o balão içado ao contrário, instalou-se na regata a hilaridade generalizada; toda a gente ria ao redor da embarcação. E daí a instantes a radio guinchava.  Que arriasse-mos imediatamente o balão, porque a televisão já estava a passar imagens em direto, sob o indicativo vexatório de notícia da última hora.

Um de nós foi à proa, e voltou arrepiado. O balão que devia formar o convite expresso para o consumo de uma conhecida marca de iogurtes, uma vez ao contrário, exibia uma figura de franca obscenidade.

O meu telemóvel tocou. Era a minha avó. Eu ia naquele barco.? Aquele com aquele chapéu ridículo, que ela me tinha trazido duns saldos em Londres, era eu? Mas não avó, aquele chapéu tinha sido roubado no colégio. Não se lembrava? Onde é que eu estava? Em casa, claro, sentado num almofadão confortável, por causa de um furúnculo num lugar impronunciável, com tempo finalmente para traduzir aquele verso de Horácio. E disse-o num latim tão perfeito, que a minha avó do outro lado conseguiu reconhecê-lo, e corrigir. Era de Virgílio!

Os telemóveis começaram todos a tocar, e não havia desculpas que chegassem para todos, sobretudo para um deles que tinha dito à mulher que era mais míope que um sobreiro, para ela seguir o jogo de rugby, porque ele era o dezanove. Mas não tinha contado com sua adorada cunhada, que era mais perversa a imaginar do que a ver.

Então, sem balão, marchámos lúgubres para a meta, que cortámos a segundos da desclassificação. Por momentos, pareceu-me que um dos membros do júri, apesar de no meio do rio, até já estava de pijama.

Ah, mas ainda faltava a entrega dos prémios. O melhor. A confraternização.

Os sorrisos e as palmadas nas costas, expressavam o inequívoco entendimento de que o mais importante era competir, embora todos ali estivessem dispostos a dar um olho pelo lugar logo acima na classificação, ou a tirá-lo, a quem não tivesse este mesmo espírito de desportivismo.

Discutia-se acaloradamente. Alguém tinha ficado com o vento de alguém.

E o episódio do balão, naquele momento já tinha sido esquecido. Trocado por outros. Como por exemplo o do conhecido político, que tinha tido a ideia de ir vomitar contra o vento. Ou o daquela embarcação que não tinha conseguido virar de bordo, tinha cortado a meta e continuado em frente, e àquela hora rumava sobranceira à Cornualha Setentrional.

Aquilo sim, é que era um alibi. Três dias para lá, quatro para cá. Uma semana!

Ainda havia quem soubesse fazer as coisas!

Autor: Eng. Artur Manuel Pires

Chefe da Divisão de Gestão do Porto de Sesimbra